Fico pensando nos que passam por mim. Os que visitam a minha “cidade interior”
Pessoas são como ”cidades”: um conjunto arquitetônico de vielas e avenidas, cruzamentos e semáforos, reservas onde árvores disfarçam a dureza do concreto, cemitérios onde os mortos são deixados na esperança de que, a ressurreição os recolha ao cair da tarde. Tudo isso compõe a cidade que somos. A praça principal, o coreto da matriz, as ruas estreitas “com suas casas antigas e os lugares ermos” nas quais ainda sobrevivem goiabeiras tão cheias de infância. Minha vida é meu leme neste oceano tão cheio de portos e partidas.
Fico pensando naqueles que passam por mim. Os que visitam a minha cidade interior. Não sei por onde entram. Se pelo ”pórtico principal” ou pelo “cemitério”. Não sei! O que sei é que, nesse constante ir e vir, o rosto anônimo insiste em permanecer vivo na retina de minhas saudades. A senhora idosa, espremida na multidão, sorriso envelhecido, mas tão cheio de uma força misteriosa, repete a melodia de minhas palavras, canta comigo em público o que um dia foi só meu. Ela me vê de longe, e eu a vejo tão perto. O rapaz tímido, máquina fotográfica nas mãos, querendo fazer o pedido mais simples, o mais corriqueiro, mas que para ele é exercício grandioso de acertar o “Davi interior” e vencer o “Golias do medo”: “Posso tirar uma foto com você, padre?” A frase sai, o medo não.
A vida de alguém que, um dia, lhe acompanhou uma dor solitária, agora ali, registrada na fotografia que ele guardará com carinho. Eu também gostaria de tirar uma foto com tanta gente! Pessoas que escrevem, e das quais nunca vi o rosto. Pessoas que deixam recados, insistem em acenar um lenço branco de paz, desejosas de que um dia a gente possa passar horas e horas falando de como nascem as músicas e de como é doído ser gente nos dias de hoje. Gente que me receberia na cozinha de sua casa e que repartiria comigo a intimidade de sua vida familiar. Pessoas que eu amaria com profundidade, que eu seria capaz de dar a minha vida por elas, mas que eu não tenho tempo para conhecer.
Não há muros na minha cidade
Ó vida que não tem conserto! Quanta pressa há nesses intervalos entre chegadas e partidas! Quantos bilhetes aéreos voados, quantas passagens de ônibus cumpridas, acumuladas num lugar da minha cidade que não sei onde fica. Vida perdida nas entrelinhas das palavras, do olhar distante que me olha querendo chegar, do coração que deseja despejar os pecados nas minhas mãos para que eu os devolva revestidos da luz, que só a Misericórdia de Deus possui. Quantos olhares perdidos, querendo conselhos, direção espiritual. Quantos braços querendo abraço, e que eu, pelo limite do corpo não alcanço. E-mails deixados na caixa, a esperança de respondê-los, pedidos de socorro, “turistas” querendo visitar minha “cidade”. Alguns retirando as “sandálias” dos pés porque acreditam na sacralidade do meu “solo”; enquanto outros desejam apenas sujar minhas “praças”. Não há muros na minha cidade.
Apenas peço ajuda aos que me amam de verdade. Velem comigo, velem por mim. Sou um “prefeito” ausente. Os poetas não são bons administradores. Precisam de mil assessores. Cidade de poeta corre o risco de ser um caos. É por isso que quero ser um poeta possuído pelo Céu. Quero a audácia de poder dizer que sou seu, sem que isso venha ferir minha castidade. Quero ser do povo, quero ser de Deus.
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Quero misturar meu sangue no sangue dos inocentes, mas não quero temer tocar no sangue dos culpados. Eu quero a vida. A mais miúda, a de toda hora. A vida de cada instante. O instante de cada vida. Eu quero o sopro em dias quentes. Eu quero o riso sem alarde. Eu quero a minha “cidade” de “portas abertas”.
Venha de onde vier, mas venha. Há sempre um “quarto” preparado para quem não tem onde dormir. Há sempre uma “mesa posta”, ainda que na madrugada. Venha de onde vier, mas venha. Minha cidade não tem muros, não tem portas. Venha quando quiser, venha quando precisar, porque num coração de padre quem manda é o povo!