Santa Teresa D’Ávila não foi a primeira a explicar a oração dividindo-a em diversos estágios. Desde os padres do deserto no século IV, passando pelos vitorinos do século X aos doutores da Escolástica no século XII, sempre se entendeu e divulgou que existiam diversos graus na vida espiritual e, portanto, na oração. A divisão clássica e simplificada expõe sempre três gruas: os principiantes, os proficientes (ou experientes) e os perfeitos.
No entanto, como vimos no último artigo, em determinado momento da vida espiritual a oração se altera tão profundamente que se torna coisa distinta e, por isso, recebe outro nome: contemplação. Na metáfora de Santa Teresa sobre a rega do jardim ou horto da alma, deixa-se de buscar água no poço e passa-se a recebê-la de modo muito mais fácil e eficiente por meio de aquedutos ou canais.
Enquanto a definição tomista de oração nos diz que ela é todo um trabalho humano, isto é, uma elevação da mente a Deus, a contemplação, também segundo Santo Tomás, é uma “simples intuição da verdade que termina em um movimento afetivo” (ST II-II Q180A3). Ou seja, a própria Verdade se apresenta e, se seu ponto de contato é logicamente o intelecto, ela não para por aí, mas provoca a vontade gerando amor. Portanto, no caso da contemplação gerada pela vida interior, é uma ação de Deus que atinge a alma.
Os diferentes graus da contemplação
A palavra contemplação, no entanto, também pode se referir a outras realidades e não somente a essa, que é a mais elevada de todas, da intervenção de Deus. Vamos diferenciar então os graus da contemplação para entendermos melhor esta que é sobrenatural.
Pode-se definir como contemplação a observação, com admiração, de um espetáculo grandioso. Nesse sentido, contemplamos a imensidão e beleza do mar, das montanhas, ou contemplamos obras de arte e arquitetura. Este é o nível mais baixo de contemplação: a estética.
Como diferenças básicas entre olhar e contemplar, poderíamos dizer que o olhar se detém nisso ou naquilo, enquanto o contemplar procura abarcar todas as coisas ao mesmo tempo. No caso da contemplação estética, cada detalhe pode (e deve) ser interessante ao olhar, mas, de algum modo, a junção de todos estes detalhes provocam um conhecimento maior do que a soma das partes. Faz parte da contemplação essa admiração ou êxtase próprio daquele que abarca muitas coisas ao mesmo tempo.
É por isso que o objeto de contemplação, seja paisagem ou obra humana, não pode ser descrito com poucas palavras ou, até mesmo, não existam palavras que bastem e o abarquem. O mais próximo da explicação de uma contemplação estética é, portanto, uma poesia ou música sobre as belezas naturais, ou a descrição dos sentimentos e sensações levantadas em sua presença. Descrições que simplesmente não explicam nada, mas buscam evocar a mesma presença contemplativa em quem houve ou vê.
Contemplação intelectual
Um segundo grau na contemplação é a contemplação intelectual. Própria dos filósofos e matemáticos, é aquela obtida somente por reflexão. Está relacionada à compreensão de estruturas mentais antes inacessíveis ou teoremas geométricos e matemáticos. A famosa exclamação “Eureka!”, “Achei!”, do grego Arquimedes é seu principal modelo. O importante é que a causa (uma visão totalizante, abrangente) e o efeito (êxtase e alegria) são os mesmos da contemplação estética ou de qualquer contemplação.
Acima da contemplação intelectual temos a contemplação teológica. Os princípios são os mesmos, a compreensão de algo abrangente, muito superior às partes também. Idêntico também são os efeitos quando se estabelece a contemplação. A diferença está no objeto que a provoca: não é mais a observação estética ou a intelectual referente a coisas deste mundo, mas Deus, Sua revelação ou ação. É superior à intelectual, pois o “objeto” é muito superior, passamos do natural para o sobrenatural, do físico para o metafísico.
Contemplação sobrenatural
Por fim, chegamos àquela que nos interessa: a contemplação sobrenatural. Esta não só tem como objeto o próprio Deus, mas é causada por Ele. Na acepção de Santa Teresa, esta é a água viva do Espírito Santo que se derrama através de canais e aquedutos, nos principiantes e proficientes, e como a própria chuva que rega o jardim, nos perfeitos.
Nas palavras da doutora: “Na mística teologia […] para de trabalhar o entendimento, porque Deus o suspende. […] De modo algum devemos pensar em nós mesmos o suspender, digo que não se faça isso, nem de trabalhar com ele, porque ficamos bobos e frios […]. Ocupar as potências da alma e pensar fazê-las estar quietas é desatino” (Vida 12,5).
Deixa claro que a contemplação sobrenatural ou infusa é obra do próprio Deus, e que é mais do que tolice, é perigoso querer provocá-la por nós mesmos. O que é e como ela acontece então? De uma maneira direta, a contemplação infusa é a suspensão do intelecto diante de uma verdade sobrenatural. Incapaz de abarcá-la, permanece admirado e travado, e embora não consiga agir por si mesmo, torna-se passivo desta mesma ação, sendo movido e, este mesmo movimento, também provoca a vontade pelo amor.
Complicado? Ajudará se buscarmos mais de suas definições.
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Ricardo de São Vítor, em seu Benjamin Maior, assim define a contemplação: “Um olhar livre e penetrante do espírito suspenso de admiração diante dos espetáculos da divina Sabedoria”. Coloca-se aqui em relevo que não é obra do próprio intelecto (por isso livre), que é muito mais profundo que uma mera apreensão normal das faculdades (penetrante) e que toca a vontade (suspenso de admiração) provocado pelo próprio Deus ou a divina Sabedoria.
São Francisco de Salles, no seu Tratado sobre o Amor de Deus, atesta: “A contemplação é uma visão simples, livre, penetrante e certa de Deus ou das coisas divinas que procede do amor e tende ao amor”. Salienta aqui que é sobre Deus ou sobre as coisas divinas e que tem o Amor como ponto principal, pois provoca o amor. Mas também lembra que, embora intelectual em sua essência, se é provocada por Deus, também é provocada pelo Amor em pessoa.
A partir do que vimos, se fôssemos simplificar ao máximo a definição de contemplação, poderíamos utilizar as palavras de São Paulo na carta aos Gálatas (Gl 5,6): a contemplação é a Fé operando através da Caridade. Ou, como atesta São João da Cruz (Noite II, 18,5): “A contemplação é ciência de amor, a qual é amorosa comunicação infusa de Deus e que juntamente vai ilustrando e enamorando a alma até elevá-la de grau em grau até Deus seu Criador”.
É, pois, uma comunicação de Deus na alma (que se encontra em estado de graça), porque é motivada pelo Amor e produz Amor, embora sua operação também passe pelo intelecto. Mas como é infusa, não passa pelas faculdades naturais do intelecto, agindo, isto sim, através das virtudes teologais e dos dons santificantes do Espírito Santo. Devido a essa operação, é santificante também, aumentando e inflamando a virtude teologal da Caridade.
O desejo ardente de unir-se a Deus
Entre seus efeitos, um desejo ardente de se unir a Deus, mas também grande quietude, paz e contentamento no espírito. E, por isso, o Beato Maria-Eugênio do Menino Jesus explica que “da obscuridade do mistério brota, mediante os dons do Espírito Santo, uma claridade confusa, um não sei quê que faz encontrar paz e sabor no mistério, que aí atém a fé ou a reconduz, libertando-a das operações discursivas da inteligência para lhe fazer encontrar repouso e auxílio neste ultrapassar toda a luz distinta. Pelos dons do Espírito Santo, produziu-se uma intervenção de Deus que aperfeiçoou a fé no seu ato teologal, transformou-a em fé viva e produziu a contemplação sobrenatural.”
Os sinais de Deus segundo São João da Cruz
São João da Cruz, no segundo livro da Subida do Monte Carmelo (13,2-4) esclarece com três sinais a evidência que Deus quer mergulhar a alma, que já avançou muito em oração, na contemplação infusa:
“Primeiro sinal é não poder meditar nem discorrer com a imaginação, nem gostar disso como antes; ao contrário, só acha secura no que até então o alimentava e lhe ocupava o sentido.” Isto é, o intelecto encontra-se bloqueado e insensível às operações de oração meditativa que fazia com facilidade e encontrava contentos como os descreveu Santa Teresa D’Ávila.
“Segundo é não ter vontade alguma de pôr a imaginação nem o sentido em coisas particulares, sejam exteriores ou interiores.” Neste segundo sinal, São João da Cruz esclarece que, se no primeiro sinal o intelecto não consegue se aplicar na oração e achar alegria nisso, também não consegue nada disso em coisas fora da oração. Não se trata, então, de uma aridez espiritual que impedia a oração, mas de um completo e complexo travamento das operações intelectuais que começam a ser assumidas pela virtude da fé e os dons santificantes para ação de Deus.
“O terceiro sinal, e o mais certo, é gostar a alma de estar a sós com atenção amorosa em Deus, sem particular consideração, em paz interior, quietação e descanso, sem atos e exercícios das potências, memória, entendimento e vontade, ao menos discursivos, que consistem em passar de um a outro; mas só com a notícia e advertência geral e amorosa já mencionada, sem particular inteligência de qualquer coisa determinada.” E, finalmente, sintetiza com um compêndio do que vimos neste artigo sobre a contemplação: Deus se comunica com a alma não com frases ou palavras (Sl 18), mas capturando sua atenção e, enquanto a impede de se dedicar, mesmo à oração, através de suas faculdades normais, infunde amor deleitoso que causa paz, quietação e descanso.
Comunicação amorosa
São João da Cruz (2 Subida, 14,2) também chama a contemplação de comunicação (do latim “notitia”), geral e amorosa. Trata-se, evidentemente, de um contato feito por Deus (comunicação), mas de forma que não é temática, ou específica, ou direta, mas geral. E se é claro que a causa é Deus, embora seu modo seja confuso (comunicação geral), seu efeito é claríssimo, causando um aumento no Amor e, por isso, amorosa.
No próximo artigo, veremos como a contemplação se desenvolve a partir dos primeiros graus da oração infusa mística, colocando em prática esse terceiro modo de se regar o jardim da alma.