Conversava há alguns dias com um grande amigo, que teve que se mudar no final do ano com sua família para muito longe de casa, por conta do trabalho. Ele partilhava comigo que tem sido difícil lidar com os vários problemas interligados, que potencializam a tensão que eles enfrentam no dia a dia. Há a ameaça constante de perder o emprego ou de ter o salário substancialmente reduzido, a ausência de pessoas conhecidas na nova cidade, a saudade da família e dos amigos que eles deixaram para trás, o medo do coronavírus, tudo isso se misturando e gerando dor e angústia nele, em sua esposa e suas filhas. E ele, que é um bom católico, um homem de fé, questiona as suas próprias decisões, incerto quanto aos passos que precisou dar e que levaram sua família até o ponto em que se encontra hoje. Há momentos, diz ele, em que preciso ir disfarçadamente até o banheiro para chorar.
No mesmo dia em que tivemos essa conversa eu havia assistido, mais cedo, ao filme Uma vida oculta, do cineasta americano Terrence Malick. A película conta a história de Franz Jägerstätter, um camponês comum que vivia com sua esposa e suas filhas na Áustria e teve sua vida transformada quando se recusou a jurar fidelidade a Hitler e lutar pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Franz morava numa pequena aldeia e tinha uma rotina bem simples. Seus dias dividiam-se entre o trabalho rural, a convivência amorosa com a família, as orações e a participação nos ritos da Igreja. Católico devoto, reconheceu no nazismo um mal com o qual não podia compactuar. Enfrentou em silêncio a incompreensão dos seus próprios vizinhos, do padre, dos seus amigos. Sofreu ameaças, viu sua família ser hostilizada, foi acusado de querer ser melhor do que os outros, de trazer perigo para a aldeia. Foi preso, condenado à morte e executado na guilhotina. Como o próprio título do filme deixa transparecer, Franz teve uma vida oculta. Ele não foi um revolucionário que abraçou uma causa e fez dela uma bandeira, nem pretendeu mudar o rumo da guerra com sua atitude. Foram muitos os momentos em que pessoas bem-intencionadas tentaram lhe convencer a mudar de opinião, pois bastava que ele fizesse o juramento de fidelidade a Hitler para escapar da morte. “Ninguém está prestando atenção em você”, diziam-lhe. “Você morrerá sozinho e ninguém se importará, de nada valerá esse seu sacrifício”. “Pense na sua esposa, nas suas filhas”. Em dado momento alguém lhe pergunta se ele tinha o direito de fazer aquilo. É uma das raras oportunidades em que Franz quebra seu silêncio, ao responder: “Eu tenho o direito de não fazer?”. No dia 26 de outubro de 2007, o Papa Bento XVI beatificou Franz Jägerstätter, reconhecendo o seu martírio.
Os martírios, dilemas e inseguranças vividos pelo homem
Ao contemplar as vidas desses dois pais de família, não vejo poucas semelhanças. Ambos são pessoas bastante comuns, que compartilham o amor a Deus acima de todas as coisas e têm sua família como maior bem nessa terra. Diante da provação, ambos sofrem o peso de terem escolhido o que julgam ser o certo, ainda que suas decisões tenham trazido dor para os seus. Finalmente, eles levam uma vida oculta. Seus dilemas acontecem no mais profundo do seu coração e não há quem possa consolá-los. Há uma solidão que lhes é própria, ainda que partilhem tudo com suas esposas. É a solidão que sentiu José quando teve que partir com Maria e Jesus para o Egito, confiando no que o anjo lhe tinha revelado em sonho. É a solidão do martírio oculto do homem comum, vivida por inumeráveis pais ao longo da história. Viveram isso aqueles homens que nunca tiveram um momento de diversão na vida porque precisaram trabalhar incessantemente para trazer o pão para dentro de casa. Talvez essa tenha sido a história do seu pai ou do seu avô. Também aquele que suportou as maiores humilhações no trabalho porque não podia se dar ao luxo de ser demitido e deixar sua família desamparada. Ou ainda o homem que tinha sonhos e projetos para si, mas se viu abrindo mão deles pouco a pouco porque sempre havia algo mais urgente: sua esposa e seus filhos. Talvez a sua história tenha um pouco disso tudo.
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Nesse tempo de pandemia, pergunto-me quantos homens de reta intenção sofrem esse martírio em silêncio. Talvez estejam desempregados ou com seu emprego em risco, e não saibam o que fazer. Olham para o céu em busca de ajuda e têm pouco a oferecer a Deus além de um pedido sincero de socorro. Olham para a sua esposa e para seus filhos e têm ainda menos o que ofertar. Ainda assim, precisam demonstrar confiança, força e coragem, porque são os homens da casa. Tenho para mim que a segunda parte da Oração de São Francisco é a oração masculina por excelência. “Senhor, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado, compreender que ser compreendido, amar que ser amado”. É vocação de todo homem o sacrifício, seja ele chamado ao matrimônio ou ao sacerdócio. Todos queremos ser consolados, compreendidos e amados, mas nos momentos de provação o homem não terá esse direito, porque há alguém que ele precisa consolar, compreender e amar primeiro. Nós, homens, somos convidados a imitar Jesus, que carregando a cruz, encontra forças para consolar as mulheres que choram, e que crucificado, preocupa-se em confiar sua mãe a todos nós. Numa época em que tudo é partilhado nas redes sociais, São Josemaria Escrivá nos ensina o caminho privilegiado: “Não com publicidade, mas ocultamente”. É assim, nos ensina o santo, que Jesus vai à festa dos Tabernáculos e percorre o caminho de Emaús, com Cléofas e seu companheiro. É assim que Maria Madalena o vê ressuscitado e assim ele vai à pesca milagrosa. Mais oculto ainda, por Amor aos homens, está na Hóstia.
Ter fé
Franz Jägerstätter não se imaginava fazendo algo de extraordinário ao permanecer firme na sua fé. Era só o certo a fazer. Aquele meu amigo também não enxerga nada de grandioso nas suas lágrimas ocultas. É só um homem simples, na sua fraqueza, chorando escondido. Chesterton, contudo, percebeu a verdade: “A coisa mais extraordinária do mundo é um homem comum, uma mulher comum e seus filhos comuns”. Homens assim, que aceitam oferecer sua vida num sacrifício discreto e silencioso, podem não receber nenhuma recompensa aqui na terra, mas serão consolados eternamente no céu.