Amadurecimento

O amor que sentimos ou o amor que decidimos

É próprio do namoro experimentar o arrebatamento da paixão. Afinal, normalmente é ela que aproxima o casal. É a paixão que provoca o desejo de estar sempre perto, que faz o coração disparar ao pensar no outro, que leva o amante a perder-se eu sua imaginação, criando na mente as mais variadas situações em que consegue conquistar o ser amado. No namoro, a paixão é o combustível que dá disposição para grandes feitos românticos em favor do outro, assim como é ela que motiva as declarações de amor eterno – há às vezes até uma competição para ver quem consegue ser mais exagerado em sua demonstração de amor. Num relacionamento que se encaminha para o casamento, a paixão é desejável, pois a sua chama trata de manter as almas aquecidas no percurso que o casal percorrerá até amadurecer sua decisão de compartilharem juntos uma vida. Sem a paixão, algumas descobertas duras a respeito do outro – duras, mas inevitáveis e igualmente desejáveis – poderiam desanimar e afastar os corações, pondo fim de forma prematura ao relacionamento.

Ainda que desejável, a paixão por si só não é suficiente para sustentar um namoro, quanto mais um casamento. É que a paixão se baseia nos sentimentos, e estes mudam ao sabor dos ventos – algumas vezes favoráveis, outras nem tanto – da vida. Um namoro ancorado na paixão – ou no “amor romântico”, como muitos chamam – tende a ser um
relacionamento marcado por sentimentos fortes e muitas vezes opostos: grandes momentos de alegria e júbilo e brigas homéricas; juras de amor eterno e raiva (ou tristeza, dependendo do temperamento) quase mortal diante de uma frustração; certeza de que é para sempre agora e certeza de que não vai dar certo daqui a cinco minutos.

O amor que sentimos ou o amor que decidimos

Foto ilustrativa: by Getty Images / PeopleImages

Amor e paixão são a mesma coisa?

Há pessoas que julgam ser capazes de amar muito só porque têm grandes sentimentos. O Papa Francisco nos ensina na Amoris Laetitia1 que isso é uma grande mentira: “Julgar que somos bons só porque ‘provamos sentimentos’ é um tremendo engano”. De nada adianta, nos ensina o Papa, termos todo esse sentimento em nós se não conseguimos lutar pela felicidade dos outros e vivemos confinados nos nossos próprios desejos.

Todo casal de namorados deve entender o que diz Denis de Rougemont2: “Estar apaixonado não é necessariamente amar. Estar apaixonado é um estado; amar é um ato. Sofre-se um estado, mas decide-se um ato”. Dessa afirmação depreende-se que é possível estar apaixonado sem amar. Num namoro assim, isso significa que quando os ventos mudarem e os sentimentos forem para outra direção, aquele que não mais se sente apaixonado porá fim ao relacionamento. Pois, uma vez que o “estar apaixonado” passa, o que sobra? Num relacionamento em que há o amor, este permanece. Porque o amor, diz o autor, é um ato, uma decisão que independe do meu estado e do meu sentimento agora ou ontem ou amanhã.

Após alguns anos de casamento, é possível perceber claramente que muitos dos nossos mais meritórios atos de amor pelo nosso cônjuge não são motivados pelos sentimentos, mas apesar deles. Há quem, durante o namoro, ande uma hora para colher uma flor para a amada movido apenas pela expectativa do beijo que receberá como recompensa ou
do sorriso emocionado que provocará nela. No casamento, o desafio muitas vezes será levar essa mesma flor ainda que você esteja com raiva ou decepcionado com a esposa por ela ter sido injusta com você. Ou o desafio será calar-se quando os seus sentimentos dizem “grite!”, “reaja!”, “não suporte isso”. Outras vezes, o desafio será dar o primeiro passo e abraçar o cônjuge após uma discussão, para dar início à reconciliação, dizendo-lhe “eu te amo”, mesmo que a vontade seja afastar-se, brigar ou dizer “verdades cruéis” que só machucarão o outro.

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Decisão diária

Não é que o namoro seja um sonho, um parque de diversões, e o casamento seja um pesadelo, uma provação sem fim. Definitivamente não. É que o casamento é, pode-se dizer, a vida real. Por maior que seja a transparência com que se viva no namoro, está sempre presente um esforço para dar o melhor para o outro, para mostrar sua melhor face. No casamento, é impossível manter isso o tempo todo. Você mostrará suas misérias e seu cônjuge também. Se um relacionamento está baseado na paixão ou no amor romântico, encarar essas misérias mútuas costuma ser fatal.

Por isso, a necessidade de lembrar que o amor – aquele declarado no altar, diante de Deus – é uma decisão que deve ser renovada todos os dias. O Papa Emérito Bento XVI aconselhou jovens namorados a trilhar um caminho de amadurecimento: “a partir da atração inicial e do ‘sentir-se bem’ com o outro, educai-vos a ‘amar’ o outro, a ‘querer o bem’ do outro. O amor vive de gratuidade, de sacrifício de si, de perdão e de respeito do outro”3. Não se pode parar na paixão. O amor conjugal, nos ensina o Papa Francisco, “é uma ‘união afetiva’, espiritual e oblativa, mas que reúne em si a ternura da amizade e a paixão erótica, embora seja capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão enfraquecem”4.

Qual a qualidade do seu alicerce para um relacionamento?

No casamento, cônjuges que experimentam a verdadeira partilha e a transparência vão ferir um ao outro ao se deixar conhecer, por mais que se esforcem para não o fazer. Faz parte do processo de conhecimento. Deve ser parte desse processo também a consciência de que os sentimentos que tiverem ao longo dessas descobertas dolorosas não determinam o amor entre eles. Para viver isso no matrimônio, entretanto, é necessário que o casal busque uma experiência profunda e autêntica com Deus. Só assim os cônjuges conseguirão decidir-se pelo amor quando precisarem ser pacientes e bondosos; só decidindo-se pelo amor conseguirão não ser invejosos, nem orgulhosos, nem arrogantes, nem escandalosos; não buscarão os seus próprios interesses, não se irritarão, não guardarão rancor, nem se alegrarão com a injustiça. Só sustentado por Deus um cônjuge vai olhar para o outro e decidir tudo desculpar, tudo crer, tudo esperar, tudo suportar.

A paixão pode acabar, mas o amor, nos ensina São Paulo, jamais acabará. Amparado nessa palavra, você pode hoje olhar para a sua vida e refletir qual a qualidade do alicerce que você tem preparado para o seu relacionamento: são os vistosos, mas frágeis fundamentos da paixão ou a discreta, mas sólida e confiável estrutura do amor? Confiantes em Deus, sabemos que ainda é tempo de mudar quaisquer inadequações estruturais que o nosso relacionamento possa ter. Basta nos decidirmos, nas pequenas e nas grandes coisas, pelo amor.

Referências:

1 PAPA FRANCISCO. Amoris Laetitia, 145.
2 ROUGEMONT, DENIS DE. O amor e o ocidente.
3 PAPA BENTO XVI. Encontro com os Namorados, Ancona, 11 de Setembro de 2011.
4 PAPA FRANCISCO. Amoris Laetitia, 120.