Edith Stein

Uma investigação sobre o Estado

Nos artigos anteriores, falamos do período após a conversão de Edith Stein, suas palestras sobre a mulher, sua ideia de vocação e sua prática como professora do instituto e escola normal da dominicanas de Santa Madalena em Espira. Vamos voltar um pouco no tempo: no final de sua fase fenomenológica, quando Edith se questionava qual seria a sua vocação, caso não conseguisse se tornar professora de filosofia em uma universidade.

Estamos em 1918, quando Edith pede demissão de seu cargo de assistente do fenomenólogo Edmund Husserl, para se dedicar às suas pesquisas sobre a natureza humana. Retorna à casa materna e começa a ministrar um curso sobre introdução a filosofia fenomenológica para mais de 30 alunos. Sabemos que havia começado a estudar autores cristãos, procurando aprofundar a análise do fenômeno religioso, mas, provavelmente, também buscando respostas para sua crise pessoal.

A verdadeira vocação de Edith Stein

Em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, quando Edith havia trabalhado voluntariamente como enfermeira, a Alemanha assina o tratado de paz em Versalhes e inicia a República de Weimar. Como vimos em um artigo anterior, ela entra para a vida política, filiando-se no Partido Democrata, engajando-se na luta pelo voto e outros direitos civis das mulheres. Logo se decepciona com a política e percebe que a sua vocação é ser professora e filósofa, mesmo não conseguindo lecionar em uma universidade.

Edith Stein em Spira

Já em 1920, começa a escrever o texto “Uma investigação sobre o Estado”¹, terminando-o em 1924 – dois anos após a sua conversão. Esse texto é um desdobramento da argumentação desenvolvida na sua tese doutoral sobre “O problema da empatia” e nos escritos “Causalidade psíquica” e “Indivíduo e a comunidade”, publicados em conjunto nos Arquivos de Husserl, com o título: “Contribuições para a fundamentação da psicologia e ciências do espírito”.

Investigação sobre a pessoa, a comunidade e o Estado

O pensamento de Edith Stein parte da fundamentação fenomenológica da constituição da pessoa humana em sua tríplice estrutura: corpo vivenciado, psique e espírito, percebendo-a como sujeito espiritual, capaz de sentimentos, pensamentos e atos livres; parte também do fenômeno empático enquanto capacidade que todo ser humano tem de reconhecer a si e ao outro como pessoa, compartilhando uma mesma estrutura universal, mas possuindo um “eu pessoal, individual e irrepetível”; parte igualmente da ideia de que as pessoas, como sujeitos livres, são capazes de constituir comunidades, diferenciando-se das coletividades dos animais². Por fim, partindo de suas análises feitas de modo fenomenológico, Edith Stein aplica o método de Husserl para investigar qual seria a essência do Estado, ou ainda, a sua estrutura essencial.

Qual é a importância desse tipo de análise? Muitas vezes, discutimos sobre o melhor tipo de Estado ou a melhor forma de governo, mas não percebemos que o conceito de Estado ou de governo que utilizamos está pressuposto sem ter sido esclarecido. Além disso, duas ou mais pessoas podem estar discorrendo sobre como deveria ser conduzida a organização estatal a partir de ideias e teorias diversas sobre o que seria o Estado. Isso pode conduzir a muitos erros e ilusões. Toda investigação sobre o Estado deveria partir de seu conceito, independentemente do tamanho, da localização, do tempo em que se encontra, se é um Estado forte ou fraco, totalitário ou democrático etc.

O método fenomenológico e a essência do Estado

Husserl e Stein entendem a fenomenologia como um método capaz de fundamentar as ciências, especialmente as que tratam do ser humano, tanto individualmente quanto em coletividade, pela sua capacidade de investigar as essências.

O método fenomenológico, para atingir a essência do objeto que pretende investigar – no caso, o Estado –, coloca “entre parênteses”, ou seja, desconsidera em sua análise os diferentes tipos de Estados que existem ou já existiram, assim como “teorias do Estado de orientações as mais diversas”³. Só assim se é capaz de chegar àquilo que Edith Stein chama, naquele período de sua formação filosófica, da “estrutura ôntica” do Estado ou o a sua estrutura essencial. Tal definição pode ser usada contra abusos e formas degeneradas do Estado, auxiliando a identificar, por meio do uso correto da razão, quando se está afastado do que um Estado deve ser.

A soberania do Estado

Edith Stein pensa o Estado a partir de dentro para fora: ele é uma formação social constituída por pessoas livres, reunidas em comunidades, com uma vida cultural fundamentada em valores. Quando esses valores produzem uma cultura específica, que perdura no tempo, a comunidade torna-se um povo. Cabe aos indivíduos que o constituem reconhecer e aceitar o poder do Estado, que deve sempre ser autorreferenciado, ou seja, capaz de manter a sua autonomia.

O elemento mais típico de uma organização estatal é a sua soberania, o fato de não se submeter a nenhum outro poder superior ao seu dentro de seu âmbito de autoridade. Logo, o Estado não é apenas delimitado a partir de dentro, pela vida dos indivíduos em comunidades e sociedades, mas também o é a partir de fora. Ele é o seu próprio senhor, mas pode conceder o direito de legislar a associações subordinadas ou até a indivíduos, também pode se comprometer, na relação com outros Estados, a reconhecer o direito das gentes.4

Personificação do Estado

Não se pode pensar um Estado que não seja soberano, tendo o seu poder reconhecido tanto interna quanto externamente. Desse modo, um Estado soberano não significa um Estado autoritário, que não respeita o direito dos indivíduos, pois tal forma de Estado acabará por perder o reconhecimento que afirma e confirma a sua própria autonomia. Da mesma forma, o governante deve viver, em primeiro lugar, como membro do Estado e, a partir desse ponto de orientação, ponderar e limitar seu comportamento, inclusive em questões ligadas ao Estado. Ele nunca deve perceber-se como “personificação” do Estado, pois o Estado “não tem alma, nem qualquer personificação anímica”5.

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Estado e povo

Tanto o Estado quanto os indivíduos são essenciais e precisam subsistir em uma relação de equilíbrio. Para que seja possível pensar nesse equilíbrio, Edith Stein distingue a comunidade estatal da comunidade povo. Um povo pode subsistir sem uma comunidade estatal, mas um Estado consegue raramente subsistir sem uma comunidade povo ou, pelo menos, uma comunidade efetiva de pessoas espirituais (livres). Logo, o fundamento do Estado é sempre uma comunidade, mais ou menos abrangente, e nunca um acordo feito entre alguns indivíduos – a teoria do contrato social – para a criação de uma superestrutura que administre suas vidas.

Para que exista uma comunidade povo, essa deve ser produtora de sua cultura própria, que exprima alguma especificidade. Logo, ela deve ser essencialmente criadora do ponto de vista cultural, gerando costumes, fundamentados em valores, que precisam ser preservados. Para o povo manter a sua força criadora, necessita que Estado garanta aos cidadãos a educação de todos para uma cultura comum. Ou seja, comunidade estatal e comunidade povo necessitam-se mutuamente:

(…) o povo, como personalidade dotada de capacidade criadora, reclama uma organização que lhe assegure uma vida segundo um ordenamento jurídico próprio; o Estado, como formação social derivada de sua própria autoridade, reclama uma força criadora que forneça conteúdo e direção à sua potência organizadora, conferindo-lhe, assim, legitimidade interna

Excluindo teorias

Depreende-se desse ponto da análise sobre o Estado que pensá-lo como uma “personalidade” própria e independente dos indivíduos que o constituem é tão aberrante quanto pensar uma comunidade de indivíduos que se organize e constitua a si mesma em autoridade, visando habitar em um território e perdurar ao longo do tempo, sem depender de um Estado. Disso já podemos excluir algumas teorias que: ou maximizam o poder do Estado – pode ser identificando a uma pessoa ou a um grupo de pessoas – em detrimento da liberdade e responsabilidade de seus cidadãos; ou o absolutizar o poder dos indivíduos, como se eles fossem capazes de se autogerenciar sem necessitar de um órgão soberano, detentor de um poder autônomo que assegure a sua vida, segundo um ordenamento jurídico próprio.

Estado e direito

Edith Stein trata da relação entre o Estado e o direito para melhor fundamentar essa circularidade virtuosa entre o indivíduo e o Estado. Para existir realmente soberania em um Estado, alicerçada na liberdade e responsabilidade das pessoas que o constituem, o Estado deve fundamentar-se no direito. Ao analisar a essência do direito, Edith Stein percebe que este se fundamenta nos atos livres de pessoas, e não é possível que um Estado se constitua em autoridade sem respeitar a liberdade dos cidadãos que o compõem. Quando isso não acontece, a tendência é que esse Estado deixe de existir:

Para poder estabelecer a si mesmo e a seu direito, o Estado precisa dispor de pessoas livres, não podendo despojá-las de sua liberdade. Ele pode se utilizar dos meios mais diversos para dar validade a seus dispositivos, até mesmo aqueles que se costumam designar por coerção e privação de liberdade. Mas estes são somente meios para mover os indivíduos a dar o seu placet [consentimento]. Esses meios motivam, mas não produzem necessidade7

Os dispositivos do Estado, também caracterizados como atos de governo, devem se apoiar sobre um direito. Não há uma precedência entre Estado e direito, pois ambos “entram juntos para a existência” 8 e, onde houver um Estado, também há um direito positivo; e, onde houver um direito positivo, um Estado é requerido como sua fonte última.

Aplicações práticas e convite à leitura da obra

Nosso intuito neste breve artigo foi o de apresentar alguns elementos da análise steiniana da essência do Estado, procurando incitar o leitor a se aprofundar nessa obra, merecedora de atenção. Ela nos afasta de teorias equivocadas e nos conduz a refletir sobre o que julgamos correto em nossas ações e relações com os outros indivíduos, com as comunidades a que fazemos parte e com o Estado.

Como aplicação prática, podemos refletir sobre a nossa atuação como cidadão de nosso Estado:

“Percebo a necessidade de desenvolver a minha força criadora, participando de modo ativo e livre de comunidades e sociedades às quais pertenço, tais como a minha família, grupo de amigos, paróquia, ambiente de trabalho, associações de bairro, grêmios estudantis etc.?”; “Participo delas com relações de mútuo pertencimento e solidariedade ou me acomodo, agindo como membro de uma “massa”, acreditando que cabe ao “Estado” prover tudo para assegurar o bem comum?

Por fim, a segunda parte da obra, que não abordamos em nosso texto, nos ajuda a pensar a relação entre o Estado, a justiça, os valores éticos e a religião. Edith Stein observa que a religião deve agir em uma esfera totalmente distinta do Estado, mas ela pode ocupar uma função social muito importante, contribuindo às ações do Estado. Da mesma forma, não cabe ao Estado intervir na crença e nas manifestações religiosas de um povo.

Referências:

1 Edith Stein, Uma investigação sobre o Estado. Trad. Maria Christina Siqueira de S. Campos. São Paulo: Paulus, 2022. – Coleção Obras de Edith Stein. O texto Eine Untersuchung über den Staat foi redigido entre 1920 e 1924 e publicado pela primeira vez em 1925, no volume 7 no Anuário de Filosofia e Pesquisa Fenomenológica, editado por Edmund Husserl. É importante notar que nesse período o nacional-socialismo ainda não se apresentava como uma proposta de organização e administração do Estado. Edith não está dialogando com esse tipo de Estado autoritário e nacionalista, mas suas análise da essência do Estado pode ajudar a discernir que um Estado totalitário, que procurar personificar-se na figura de um “Führer” [líder] máximo, desrespeitando um ou mais dos povos que o constituem, não consegue manter-se por muito tempo, pois seus fundamento não está ancorado em valores compartilhados pelos seus membros e não age de acordo com o direito.

2 Em sua obra “Indivíduo E Comunidade” Stein já utilizava a classificação das coletividades humanas em três tipos. Essa mesma classificação será retomada aqui: Massa, Comunidade e Sociedade. A massa é o tipo mais pobre de associação, onde os indivíduos se influenciam reciprocamente sem reconhecer e refletir sobre essa influência recebida ou exercida, podendo tornar-se um todo homogêneo, onde as pessoas não desenvolvem suas caraterísticas específicas, especialmente as espirituais. Se os indivíduos deixam de estar em contato efetivo, a massa “desmorona” (Edith Stein, 2022, p. 47). A comunidade é o tipo mais rico de associação humana, pois fundamenta-se no espírito e possibilita que os indivíduos se reconheçam mutuamente como sujeitos livres e vivam “uns com os outros” no sentido rigoroso dessa expressão. Ex. família, comunidade de amigos, comunidade religiosa. A comunidade não deixa de existir se um ou mais indivíduos saírem da comunidade, e aqueles que lá se encontram sentem-se membros. Possui uma forma estável e uma organização distinta dos próprios indivíduos e por isso parece aproximar-se mais da natureza do Estado. A comunidade cresce por meio das relações humanas de mútuo pertencimento e solidariedade. Ex. família, comunidade de amigos, comunidade religiosa (Edith Stein, 2022, p. 49). O terceiro tipo de sociabilidade é a sociedade, onde pode existir uma organização que independe dos indivíduos, mas esses não são vistos como membros, como sujeitos livres, tal como ocorre na comunidade, mas são objetos uns para os outros, ou melhor, são sujeitos objetivados, são reconhecidos pelas funções que desempenham na sociedade. A sociedade pressupõe a vida comunitária, ou seja, a objetivação pressupõe a relação de um sujeito e pode ser vista como transformação racional da comunidade: “O que, na comunidade, resulta per se de uma ingênua vida em comum na vida da sociedade se origina de atos voluntários conscientes. A comunidade cresce; funda-se a sociedade.” (Edith Stein, 2022, p, 50). Logo, a sociedade também pode estar na fundamento do Estado, mas sempre deve-se salientar que no fundamento da sociedade estão as comunidades.

3 Edith Stein, Uma investigação sobre o Estado, 2022, p. 43.

4 Isso ocorre quando o Estado se compromete, em sua relação com outros Estados, a respeitar certas formas de direito. Edith Stein, 2022, p. 58.

5 Edith Stein, 2022, p. 86.

6 Edith Stein, 2022, p. 70.

7 Edith Stein, 2022, p. 105.

8 Edith Stein, 2022, p. 116.