“Os pobres são pessoas, têm rosto, uma história, coração e alma. São irmãos e irmãs com os seus valores e defeitos, como todos, e é importante estabelecer uma relação pessoal com cada um deles.” (Papa Francisco, Mensagem para o dia Mundial dos Pobres, 13 de junho de 2023).
Assim expressa com propriedade e autoridade o Papa Francisco em sua Mensagem, por ocasião da Jornada Mundial dos Pobres que celebrará neste ano, 2023. Ainda ressoam em nossos ouvidos as palavras do mesmo Pontífice, narrando o evento que o elegeu Bispo de Roma, a Igreja que preside, na caridade, todas as Igrejas. Assim, dizia o Papa: “Na eleição, eu tinha ao meu lado o arcebispo emérito de São Paulo, um grande amigo. Quando a coisa começou a ficar um pouco perigosa, ele começou a me tranquilizar. E quando os votos chegaram a 2/3, aconteceu o aplauso esperado, pois, afinal, havia sido eleito o Papa. […] Ele me abraçou, me beijou e disse: ‘Não se esqueça dos pobres’. Aquilo entrou na minha cabeça. Imediatamente lembrei de São Francisco de Assis”.
Toda a experiência de Fé é inexoravelmente voltada para o cuidado dos pobres, e não apenas em aspectos assistencialistas ou paternalistas, mas de levá-los à total libertação do maldito jugo da pobreza.
A opção preferencial pelos pobres, expressamente recomendada e vivida pelo Papa Francisco não é uma novidade na história da Igreja. Tal opção também não se constitui em uma criação que pode ser remetida à Doutrina Social da Igreja, sistematizada a partir de Leão XIII com a publicação da Encíclica Rerum Novarum. Esta opção também não é fruto das diretrizes conciliares, ela tem como principal exemplo Jesus Cristo: “que por causa de vós se fez pobre, embora fosse rico, para vos enriquecer com a sua pobreza (2Cor,8-9)”. A Doutrina Social da Igreja e as Diretrizes Conciliares trazem, aprofundam e aplicam os ensinamentos e a opção de Jesus para os tempos atuais, mas sem perder a essência de sua mensagem.
O amor e o cuidado de Frei Galvão aos pobres
O nosso Santo Antônio De Sant’Ana Galvão — Frei Galvão — é um desses latino-americanos que encarnou plenamente a opção preferencial pelos pobres. Foi no lar, autenticamente cristão, que ele foi assimilando a dimensão mais profunda da fé: amor. Quando menino, presenciou os próprios pais se desdobrando no cuidado pelos necessitados. Viu muitas vezes seu pai, o Capitão Mor da Vila, entregando moedas aos pobres que se sentavam à porta da Igreja Matriz de Guaratinguetá, quando se dirigia para a missa cotidiana.
Conta-se que em um momento de enfermidade, seu pai foi tomado pelo pesadelo no qual estava em pleno Juízo Final. Mas, diante do Grande Juiz, esses mesmos pobres (ajudados cotidianamente pelo moribundo) apareceram para defendê-lo com as moedas recebidas e ofertaram ao Pai Misericordioso em favor de sua salvação. É claro que o “possível” sonho do pai de Frei Galvão é uma narração, recheada de símbolos, mas que indicam o caminho de fé de todo cristão: o cuidado com os que sofrem e a repercussão eterna de nossos atos.
O seu cuidado pelos endividados
Entre muitos prodígios e gestos que expressam a “opção preferencial pelos pobres” doem nosso Frei Galvão, creio que seria muito importante ressaltar um: o seu cuidado pelos endividados. Como sabemos, Frei Galvão era o porteiro do Convento São Francisco, na cidade de São Paulo, serviço que naquele tempo era de suma importância, pois deveria ser o elo de comunhão dos frades que viviam no Convento e as pessoas que de estavam fora. Eram muitas as pessoas que recorriam a ele, buscando alívio espiritual em suas angústias e socorro material em suas necessidades.
Se hoje temos uma estrutura e organização social injusta, no tempo de Frei Galvão as coisas não eram melhores. Estamos no século XVIII e XIX. O grupo majoritário que recorria ao Frei eram, sem dúvidas, os pobres. Operários de diversos setores que, com suas famílias, viviam a escassez e a dureza. Os empregadores — “bons católicos” —, exigiam horas de trabalho extenuantes e com condições desumanas, além do mais, pagavam um “salário” extremamente miserável. Tais empregadores eram de tal forma “delinquentes” que, além dessas condições de trabalho, digamos “criminosas”, eram também os proprietários do comércio e dos mercados onde os empregados deveriam comprar alimentos para o sustento de suas famílias. E como a lógica é sempre aquela da “exploração”, os preços desses víveres eram exorbitantes.
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Frei Galvão era um verdadeiro cristão
Os pobres trabalhadores, além de ganharem uma “merreca”, eram obrigados a gastar nas vendas do patrão; e não tendo como completar as despesas, “penduravam” as contas para o mês seguinte. E isso ia evoluindo, em um círculo de verdadeira escravidão. Essa era a sociedade paulistana daquele tempo. Muitos desses empregados recorriam ao Frei e lhe expunham essa dolorosa angústia. Mas nosso Frei Galvão aprendeu dentro de casa que o cristão é aquele que não vê diferença entre o corpo sofrido do pobre e a mesma Carne de Cristo. Acreditava com convicção que a Eucaristia só tem valor quando ninguém passa fome e ninguém sofre injustiça.
Frei Galvão tinha seus meios para arrecadar recursos e, seu coração solícito e profundamente evangélico, não pensava duas vezes. Transbordando de zelo e indignação, ia em cada mercado e comércio, e tratando diretamente com o “empregador injusto”, saldava as dívidas desses pobres. Muitos desses endividados, sem saber do gesto de Frei Galvão, iam até o patrão e dono do mercado, pensando ainda que tinham pendências. Tiravam do bolso aquele lenço com algumas moedas … Era um “dinheiro suado”, fruto de lagrimas e dedicação, dividas feita para alimentar os filhos, mas, quando apresentavam aquelas mãos trêmulas e as moedinhas, recebiam a resposta inesperada:
-“Não precisa! O Frei já passou aqui! O Frei já pagou!”.
Há no mundo lugar para todos viverem com dignidade!
Precisamos olhar o testemunho corajoso de Frei Galvão, um santo latino-americano, o Santo Brasileiro, o “Santo da Opção preferencial pelos pobres”. Com Frei Galvão, aprendemos que ninguém pode sobrar: há no mundo lugar para todos viverem com dignidade. Existe, no fundo, grande crise de humanidade, na qual se nega o ser humano, o que é altamente reprovável no mundo cristão. Igualdade social é imprescindível para um mundo de paz.
Nossa experiência deriva da nossa fé em Cristo, que se fez pobre e sempre se aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade. Frei Galvão ensina que os mais pobres são os que mais necessitam do olhar atento da Igreja, são os privilegiados de Deus. Ajudá-los é uma obra libertadora: cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus a serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isso supõe estar docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta percorrer as Escrituras, para descobrir como o Pai bom quer ouvir o clamor dos pobres. Escutar o clamor pela justiça vindo do evangelho nos impulsiona a encontrar o rosto do outro e dar-lhe vida.
Frei Galvão, amigos dos pobres, rogai por nós!
Dom Cristiano Sousa OSB Cam – Mosteiro de Fonte Avellana – Itália