Estamos tratando do período em que Edith Stein, doutora em filosofia, após seu ingresso na Igreja católica, passa a atuar como professora de moças no centro formativo de Santa Madalena das dominicanas em Espira. Ela começa a ser conhecida como formadora cristã, e é chamada a dar conferência em vários países de língua alemã. Essas suas duas vivências a conduziram a aprofundar o tema do ser humano como “sujeito de formação”.
Partindo do que havia investigado sobre a constituição do ser humano com seu Mestre Edmund Husserl, especialmente para a escritura e defesa de sua tese doutoral sobre a empatia, Edith dialoga com a tradição cristã e amplia ainda mais o seu horizonte de investigação. Com Husserl, ela compreende o que significa pensar o ser humano como pessoa, como um sujeito capaz de atos livres, ou ainda, de atos espirituais. Agora, ela se coloca novas questões, ou ainda retoma as questões que já havia analisado antes, mas iluminando-as com a luz da fé revelada, obtida de suas leituras da Sagrada escritura, da doutrina católica e dos escritos dos padres e doutores da Igreja, além de teólogos contemporâneos, como o Cardeal Newman.
Sua experiência como professora de jovens a faz abordar o tema da formação em várias de suas conferências, assim como no curso de antropologia filosófica que dará em 1932-1933, no Instituto de Psicologia Científica de Münster. Ela procura pensar como se dá a formação do ser humano. Ele nasce como uma página em branco, onde as influências do meio o vão moldando de modo fortuito, ou ele já tem em si, pré-determinado, em sua constituição biológico-genética, o que se tornará? Para Edith Stein, partindo sempre do método fenomenológico, nenhuma dessas duas soluções antitéticas são verdadeiras, mas o que acontece na realidade é um “equilíbrio” entre elas. Ela o encontra na concepção da pessoa humana da metafísica cristã.
A vocação como chamado
Segundo os escritos de Edmund Husserl sobre a constituição do ser humano, uma mesma forma geral se encontra em todos os seres humanos, pois todos são “pessoas”, independentemente do sexo, raça, extrato social, local de nascimento etc. Mas, além dessa forma geral, Edith se interessa pelo fato de cada pessoa ser única e irrepetível, ou seja, cada uma vivencia sua forma geral ao seu modo, de acordo com suas crenças e valores, ao longo de sua vida.
Na concepção cristã, toda pessoa já nasce com uma forma geral, pois é criada por Deus para ser sua “imagem e semelhança”. Mas cabe a cada indivíduo preencher essa forma a seu modo, de acordo com suas especificidades individuais, com o seu ethos específico – de onde vem a palavra ética. Essa é a vocação de cada pessoa, onde a palavra “vocação” vem do latim: vocare, que significa “chamado”.
(…) é Deus, em última análise, quem convoca. É ele que chama: toda pessoa para realizar algo que é de sua vocação, cada um individualmente para algo que é sua vocação toda particular e, além disso, o homem e a mulher, como tais, para algo especial.1
Um chamado da parte de Deus
Segundo a tradição cristã, Deus nos criou para sermos o que Ele desejou para cada um de nós. Mas a realização em maior ou menor perfeição da própria vocação depende de uma série de fatores. Entre eles é inegável a influência do meio e a constituição genético-biológica de cada um. No entanto, sem negar a influência desses fatores, a constituição do ser humano como um sujeito espiritual, capaz de pensamentos, sentimentos e atos livres, o torna capaz de optar, de modo mais ou menos livre, quais fatores realmente influenciam em sua formação.
Isso se aplica a todo ser humano, independentemente de ele ter fé em Deus ou não, da consciência de ser chamado por Deus a desenvolver, do modo mais perfeito possível, a sua individualidade irredutível, a sua “nota pessoal”. No entanto, ao exercermos a nossa liberdade, sempre nos aproximamos ou nos afastamos do plano de amor de Deus para cada um de nós, de nossa vocação autêntica, independentemente de sermos conscientes dela ou não.
Nossos defeitos são amados por Deus
Nós, os cristãos, sabemos que Deus ama todas as pessoas com um amor especial: um amor de predileção, maior do que amou os outros seres vivos, inclusive os seres espirituais (anjos). Ele quer que cada ser humano viva no amor e se desenvolva em sua plenitude, dentro de suas possibilidades e limitações, para se aproximar do que pensou para cada um de nós. Edith Stein tira uma conclusão dessa afirmação: segunda ela, todos os nossos defeitos e limitações são queridos por Deus, pois servem para o nosso desenvolvimento individual, assim como para suscitar o desenvolvimento da vocação individual das pessoas com quem convivemos.
Vemos isso no nosso cotidiano. Por exemplo, o nascimento de uma criança com deficiências físicas ou psíquicas pode conduzir a uma maior união entre os membros daquela família, pode motivar amigos próximos a olharem de modo diverso para as suas próprias famílias e os predispõem a ser mais solidários com aqueles que são mais frágeis. Vemos como a limitação de um ser humano pode motivar o preenchimento mais equilibrado e autêntico da vocação dos que lhe são próximos.
Deus quer salvar a todos e chama cada um a participar dessa história de salvação, não apenas individual, mas de toda a família humana. Nós o fazemos descobrindo e vivendo, o mais próximo possível, da vocação a que somos chamados, tanto na ordem natural quanto na ordem sobrenatural2 .
A vocação natural do ser humano
Como já foi falado, as observações de Edith Stein sobre a vocação natural do ser humano são oriundas dos estudos fenomenológicos sobre a constituição do ser humano de seu Mestre, Edmund Husserl, iluminadas pela concepção de pessoa da metafísica cristã. Essa vocação pode ser entendida como o “fundamento natural” a partir do qual o ser humano irá se formar, desenvolver-se.
Esse fundamento se refere à ‘forma interior’ também denominada ‘primeira força formadora’ sobre a qual o gesto
educativo se apoia. (…) cada ser vivo, em virtude de sua forma própria, está envolvido no processo de atualização das características constitutivas da sua espécie, realizando assim a sua finalidade natural.3
Leia mais:
.:Minha vocação e o chamado de Deus
.:A formação da mulher: Edith Stein
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A vocação do homem não é evidente
Essas três dimensões estão implicadas na vocação natural do ser humano, que deve procurar desenvolvê-las de modo harmônico e integral. Além disso, nós seres humanos ocorre algo drasticamente diferente do que observamos nos outros seres vivos, cuja “vocação” já está inscrita em sua forma pré-determinada: a vocação da macieira, por exemplo, é a de produzir maçãs; a dos animais é a de produzir indivíduos semelhantes a si para manter e preservar a espécie. A vocação do ser humano não é algo visível, evidente, desde o seu nascimento. É claro que já se pode perceber em uma criança as suas peculiaridades: seus dons, suas limitações etc., mas a vocação é algo que vai amadurecendo e se tornando perceptível, para si mesmo e para os outros, ao longo da vida.
Por meio da análise da constituição do ser humano, sem precisar se levar em conta a revelação, pode-se concluir que o objetivo de toda criatura é desenvolver a sua vocação natural, buscando a perfeição de sua natureza. A revelação nos permite compreender que ao fazer isso, a criatura está glorificando o Criador4.
Por meio da análise da constituição do ser humano, sem precisar levar em conta a revelação, pode-se concluir que o objetivo de toda pessoa é desenvolver a sua vocação natural, buscando a perfeição de sua natureza físico-psíquica-espiritual. Mas a revelação nos permite compreender que, ao fazer isso, a criatura está glorificando o Criador de modo propriamente humano, diferente de todos os outros seres criados por Deus, e por isso pode e deve contar com a graça para desenvolver de modo ainda mais pleno os seus dons naturais, assim como superar limitações que não conseguiria apenas com as suas próprias forças. Logo, a vocação natural do ser humano remete, “naturalmente”, à sua vocação sobrenatural.
A vocação sobrenatural do ser humano
Segundo Edith Stein, cabe a todo ser humano colocar-se conscientemente, com tudo o que é e o que tem, a serviço do Criador; viver como filho de Deus e deixar-se “amadurecer” em suas mãos. Mas a liberdade pensada por Deus como um presente para nós, revela-se como livre arbítrio: com ela o ser humano pode aproximar-se ou afastar-se de Deus. Na Bíblia, esse fato é ilustrado pela narrativa da criação e da queda dos nossos primeiros pais, Adão e Eva. Segundo Stein, com a queda, os instintos se revoltaram contra o espírito, a inteligência obscureceu-se e a vontade enfraqueceu-se.
Mas Deus vem, gratuitamente, em auxílio de nossos pais. A inteligência não se obscureceu totalmente, a vontade não enfraqueceu totalmente. Com auxílio das faculdades espirituais o ser humano é capaz de fortalecer o espírito e não deixar-se submeter aos instintos, à dimensão apenas psíquica da alma. Deus concede ao ser humano a possibilidade da redenção: cabe a cada um de nós a decisão do caminho que deseja trilhar. Ele nos fez por amor e quer que nos aproximemos dele e dos nossos semelhantes, também por amor. Não somos capazes de amar como precisamos para realizar a vocação querida por Deus, e por isso Ele enviou o seu único Filho para nos salvar e servir de modelo – arquétipo –, revelando-nos a imagem do ser humano redimido.
A vocação precisa de Deus e do próximo
A natureza humana, corrompida pela queda, não consegue desenvolver-se plenamente e necessita da colaboração da graça divina para realizar a sua vocação. Mesmo com tal colaboração, nunca alcançará o ideal de um desenvolvimento completo e perfeito da natureza humana em sua totalidade, pois sempre existirão disposições pessoais e circunstâncias que limitam o próprio desenvolvimento. Além disso, Deus nos fez de modo a precisarmos uns dos outros para realizar a própria vocação: ser humano, deixado livre, não se desenvolve necessariamente na direção da realização de sua vocação, ele precisa ser “educado para a liberdade”. E tal educação só atinge o seu objetivo se, além de fundada nos valores da vida cristã, comunica a imagem ideal da natureza humana na pessoa de Jesus Cristo.
Referências:
1 STEIN, Edith. A vocação do homem e da mulher de acordo com a ordem natural e da graça. In: A
mulher: Sua missão segundo a natureza e a graça. Trad. Alfred J. Keller. Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 74.
2 O tema da vocação natural e sobrenatural do ser humano foi tratado por Edith Stein em uma
Conferência dada no congresso de Páscoa para jovens professoras da Associação das professoras
católicas da Baviera em Munique (07 a 11 de abril de 1931): La misión de la mujer.
Se predispõe a refletir sobre o sentido e fim da existência humana em geral e, a partir dessa, das
mulheres em especial. Esta conferência foi publicada na revista Zeit und Schule, em seu número para
jovens, no dia 16 de maio de 1931. Encontra-se publicada em: STEIN, Edith. Escritos antropológicos y
pedagógicos. Magistério de vida cristiana: 1926-1933. Obras Completas, V. IV. Burgos–Vitoria–Madrid:
Ed. Monte Carmelo–Ed. el Carmen–Ed. de Espiritualidad, 2003, p. 245-254.
3 RUS, Éric de. A visão educativa de Edith Stein: aproximação ao gesto antropológico integral. Trad.
Isabelle Sanchis… [et al]; ver. Téc. Juvenal Savian Filho. Belo Horizonte: Ed. Artesã, 2015, p. 53-54.
4 Essa verdade se aplica a todas as criaturas, não apenas ao ser humano: às plantas, aos animais, a toda
a natureza em geral. Por isso, quando não permitimos que a natureza se desenvolva de modo
harmônico, estamos também desrespeitando a vontade do Criador, assim como a nossa vocação
comum de cuidar de toda a criação. Papa Francisco desenvolve esse tema em Laudato Si’ – Sobre o
cuidado da casa comum, de 2015.