Dia Mundial da Paz

O que a Igreja entende por paz?

“Bem-aventurados os que promovem a paz” (Mt 5,9)

O Papa Francisco, em sua mensagem para o dia mundial da paz de 2020, sempre celebrado no dia 1º de janeiro, afirmou que: “A paz é um bem precioso, objeto da nossa esperança; por ela aspira toda a humanidade”. Aqui surge uma pergunta: “Que paz?”. Não é uma pergunta vã; pois são múltiplas e divergentes as concepções de paz. Qual é a concepção evangélica de paz?

A antífona de entrada da Missa da meia-noite no Natal inicia-se com este hino: “Alegremo-nos todos no Senhor: hoje nasceu o Salvador do mundo, desceu do céu a verdadeira paz!”. É o dia santo em que brilha sobre nós a “grande luz” de Cristo, mensageiro de paz!

O que a Igreja entende por paz

Foto Ilustrativa: by Getty Image / ipopba

Lemos no Evangelho de São João 20,19-31: “Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam, com medo dos judeus, veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes: ‘A paz esteja convosco’. Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor. Jesus disse-lhes de novo: ‘A paz esteja convosco’. Jesus vem, coloca-Se no meio dos discípulos e diz-lhes: “A paz esteja convosco!”. Esta saudação de Jesus é, ao mesmo tempo, um desejo e uma realidade, conforme Suas próprias palavras no contexto da última ceia: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz!”.

Jesus é o único que pode desejar a verdadeira paz

No texto anterior, percebemos que a paz é o primeiro e fundamental dom do Ressuscitado: “A paz esteja convosco!”. Jesus é o único que pode desejar e dar a verdadeira paz, a sua paz: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo dá” (Jo 14,27). Paz que é fruto da missão de Jesus, mas que é entregue à sua comunidade para que também ela seja anunciadora e fazedora da Paz: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio”.

O desejo de Jesus não é somente que os seus discípulos estejam em paz, mas dá-lhes a sua paz. Não é a paz que o mundo dá. A paz não é somente ausência de guerra, muitas vezes, a paz dos cemitérios é também o respeito pela vida do outro, serviço aos irmãos. A paz que Jesus dá é a plena realização da vontade do Pai e que gera em nós a verdadeira felicidade: “ficaram cheios de alegria”. Deus cria os seres humanos para que vivam a plena realização numa relação de amor com Ele. No Senhor Jesus encontramos plena realização da paz.

O documento conciliar Gaudium et spes, no número 78, propõe o tema da paz de modo positivo e bíblica ao afirmar: “A paz não é ausência de guerra; nem se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas, nem resulta duma dominação despótica. Com toda a exatidão e propriedade ela é chamada ‘obra da justiça’ (Is. 32, 7)”. Esta mesma compreensão é apresentada pelo Papa Francisco: a paz “não é apenas ausência de guerra, mas o empenho incansável, especialmente daqueles que ocupamos um cargo de maior responsabilidade, de reconhecer, garantir e reconstruir concretamente a dignidade, tantas vezes esquecida ou ignorada, de irmãos nossos, para que possam sentir-se os principais protagonistas do destino da própria nação”. Portanto, a paz é dom de Cristo ressuscitado. Paz é caridade cristã, fraternidade universal. O apóstolo Paulo define a mensagem cristã como “Evangelho da paz” (Ef 6,15).

A paz precisa ser construída

São João Paulo II afirmava continuamente que “a paz começa no coração do homem. O que principalmente precisa mudar são o coração e as atitudes da pessoa; e isso exige uma renovação, uma conversão dos indivíduos”. 2 No entanto, a paz terrena jamais se pode considerar completa porque a paz não se alcança de modo estável, mas é preciso construí-la constantemente neste mundo ferido pelo pecado.

A paz acontece quando se realiza a tríplice harmonia: harmonia dos seres humanos na sua relação com Deus, harmonia na sua relação com os irmãos e harmonia na relação como o meio ambiente. A paz é uma totalidade de vida, “abundância de vida”. Nisto cumpriu-se a missão de Jesus: reconciliar os homens com Deus, reconciliá-los entre si e com toda a criação. A paz acontece plenamente na presença do Ressuscitado, pela força do Espírito. Cabe a cada um de nós acolher esta paz, a recusa em acolhê-la é um obstáculo à plena realização do plano criador do Pai e a recusa do amor. Acolher a presença de Jesus, deixando-O depositar em nós a fonte de todo amor, para reaprender a viver a fraternidade, permitimos que Ele continue em nós a sua missão de paz e seremos felizes, como declara o próprio Cristo, “bem-aventurados (felizes) os que promovem a paz” (Mt 5,9)

O Papa Francisco, na oração do Angelus do dia 27 de julho de 2014, fez um apelo para que cessem os confrontos, as guerras por meio de “um diálogo paciente e corajoso” em prol da paz. “Peço-vos, de todo o coração: por favor, parem (os ataques). É tempo de parar”, exclamou o Pontífice. E ainda: “Peço que se unam em minha prece para que o Senhor conceda às populações e às autoridades destas regiões a sabedoria e a força necessárias para que seja obtido com determinação o caminho da paz”. Ninguém pode participar do amor de Deus, se não estiver disposto a ser um construtor da paz, a perdoar e a reconciliar-se, tanto no nível pessoal quanto no nível social (cf. Rm 5,8.10). Essa foi a atitude do próprio Deus.

O reconhecimento da dignidade do ser humano exige a paz, o respeito aos irmãos e o cultivo da fraternidade e da vida, “obra da justiça” (Is 32,17) e efeito da caridade. Sobretudo, nos nossos tempos, temos a obrigação de nos tornarmos promotores da paz e do respeito aos irmãos e irmãs recordando a voz do Senhor: “Todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim é que fizestes” (Mt 25,40). Cada cidadão e cada governante deve agir de modo a evitar todas as formas de violência contra as pessoas.

Devemos ser sinas de esperança na sociedade

O Papa João Paulo II afirma a existência de sinais de esperança, em muitos setores da sociedade, de uma nova sensibilidade cada vez mais contrária a toda forma de violência, uma sociedade sempre mais inclinada à busca de instrumentos eficazes, mas “não violentos”, para promover o respeito, a justiça e a paz.

Na encíclica Fratelli tutti, o Papa Francisco afirma que para sermos construtores autênticos da paz, “o ponto de partida deve ser o olhar de Deus, isto porque, Ele não olha com os olhos, mas como o coração (281); como pessoas que creem, somos desafiados a retornar às nossas fontes para nos concentrarmos no essencial: a adoração a Deus e o amor ao próximo” (282); apresentar um culto sincero e humilde a Deus, “quem não ama, não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,8); para o “as convicções religiosas sobre o sentido da vida humana consentem-nos reconhecer ao valores fundamentais da nossa humanidade (283); e, somos chamados a ser verdadeiros “dialogantes” (284).

Promover a paz é atitude das obras de misericórdia. A caridade cristã reconhece uma humanidade universal, interconectada, reconhece que todos somos afetados por igual, fraternidade construída pela amizade social, concreção, reconhecimento cada um como filho, filha de Deus, como irmão e irmã uns dos outros, enfim, como humanidade. Fraternidade luta pela paz, anuncia com parresia.

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A construção da paz tem um caminho a ser percorrido: “o processo de paz é um empenho que se prolonga no tempo. É um trabalho paciente de busca da verdade e da justiça” (Cf. Encíclica Fratelli tutti, 226-250). Um caminho percorrido a partir da verdade, num esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma nova síntese para o bem de todos. Ainda, para o Papa, a verdade, justiça e misericórdia são essenciais, as três juntas para construir a paz. O trabalho tem que ser todos juntos na construção de uma sociedade baseada no serviço aos outros, na partilha com os outros e no valor de estar juntos como seres humanos. É preciso superar o que nos divide, sem perder a identidade de cada um; ir ao encontro dos mais pobres e vulneráveis; superar as desigualdades e da falta de desenvolvimento integral, do perdão partilhado. Com tudo isso, é preciso renunciar a toda força destruidora que causou o mau e que impede a verdadeira paz acontecer.

Dia mundial da PAZ 2021

O Dia Mundial da Paz foi instituído em 1968 pelo Papa Paulo VI (1897-1978) e é sempre celebrado no dia primeiro de janeiro de cada ano. A mensagem do Papa Francisco para o 54.º Dia Mundial da Paz 2021 (1º de janeiro) tem como título ‘A cultura do cuidado como percurso de paz’. Não tenho interesse de transcrever a mensagem do Papa Francisco, sugiro que o leitor reflita sobre o tema diretamente no rico texto.

A “cultura do cuidado” envolve o desafio de uma reflexão teológica e sistemática, mas também enquanto práxis de vida com uma nova mentalidade fundada nos valores do Evangelho. Este debate torna-se particularmente urgente devido à exigência de um espaço para tal reflexão no magistério e na vida do Papa Francisco, que apresenta grande sensibilidade ao real significado do cuidado: “Todos os compromissos decorrentes da doutrina social da Igreja derivam da caridade que é – como ensinou Jesus – a síntese de toda a Lei (cf. Mt 22, 36-40). Isto exige reconhecer que o amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor (Fratelli tutti, n. 181).

O Papa Francisco, atento às necessidades de tantos irmãos e irmãs, recorda em sua mensagem que o ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenômeno plurissetorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, econômica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incômodos. O Pontífice lembra daqueles e daquelas que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho. Lembra, de modo especial, dos médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, investigadores, voluntários, capelães e funcionários dos hospitais e centros de saúde, que com grande fadiga e sacrifício, a ponto de alguns deles morrerem quando procuravam estar perto dos doentes a fim de aliviar os seus sofrimentos ou salvar-lhes a vida.

Para o Papa esses acontecimentos ensinam-nos a importância de cuidarmos uns dos outros e da criação, a fim de se construir uma sociedade alicerçada em relações de fraternidade. O grande desejo do Papa consiste em proclamar a cultura do cuidado como forma de erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito que, hoje, muitas vezes, parece prevalecer.

O fiel discípulo de Jesus é aquele quem cuida do outro e, de modo especial, dos mais vulneráveis. O cristão não pode ser indiferente às necessidades de tantos irmãos e irmãs. E como afirma o próprio Papa Francisco na Encíclica Fratelli tutti (Cf. n. 56-86): “Diante do sofrimento, há apenas uma saída: ser como o bom samaritano. ‘Qualquer outra opção termina ou do lado dos salteadores, ou do lado dos que passam ao largo, sem se compadecer da dor do homem ferido no caminho'”.

Referências:

[1] Francisco, Discurso no encontro com as autoridades, o corpo diplomático e alguns representantes da sociedade civil (Maputo – Moçambique 5 de setembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 10/IX/2019), n.3.

[1] São João Paulo II. A paz, valor sem fronteira, mensagem para a 19ª Jornada mundial da paz, 1986.