Somos bons?

Não poucas vezes, dizemos que é boa uma pessoa que é somente “bonachona”, isto é, que tem bons sentimentos, nunca briga, cede a tudo, é condescendente conosco até em coisas que nos fazem mal…, mas não nos faz nenhum bem profundo e construtivo.

Bom, de verdade, é somente aquele que nos faz bem. E o bem é, acima de tudo, o valor moral e espiritual de uma pessoa. Portanto, bom mesmo é somente aquele que nos ajuda a ser melhores.

Quando já vivemos um bom pedaço da vida e olhamos para trás, contemplamos um vasto panorama de vicissitudes diversas, de erros e acertos, de perigos que nos ameaçaram, de dúvidas que nos paralisaram, de alegrias e tristezas. Mas, no meio dessas lembranças, todos nós podemos ver brilhar uns pontos de luz que jamais esqueceremos: pessoas que, no momento em que mais precisávamos, nos fizeram bem: “Fulano – dizemos – ajudou-me muito”, “significou muito para mim”; “graças à Sicrana, consegui superar um problema grave (ou uma crise ou um estado de ânimo) que me poderia ter arrasado”…

Mesmo sem darmos por isso e sem dizê-lo explicitamente, estamos falando de pessoas “verdadeiramente boas”. Inconscientemente, possuímos a convicção de que foram bons, para nós, aqueles que nos despertaram para ideais mais nobres, que nos deram a mão para nos levar a encontrar um sentido mais alto da vida, que iluminaram as nossas escuridões interiores fazendo-nos compreender aquilo por que vale a pena viver.

Em suma, foram “bons” os que nos elevaram a um maior nível de dignidade moral e nos ajudaram a ser melhores, mesmo que para isso tivessem precisado, em algum momento, de nos fazer sofrer. Contribuíram para que descobríssemos e abraçássemos o bem, e não se contentaram com o deixar que nos “sentíssemos bem”…

Se, para tanto, foi necessário que nos aplicassem uma enérgica e paciente “cirurgia”, não duvidaram em fazê-la, mesmo sabendo que, de início, não os compreenderíamos. Souberam ter a coragem – pensemos, por exemplo, nos pais e educadores – de dizer-nos serenamente “não” e de manter essa posição em defesa do nosso bem, ainda que nós a interpretássemos como teimosia prepotente e irracional. Passado o tempo, compreendemos e agradecemos o que essa energia amorosa significou para nós.

O pessoa boa recusa-se a tomar como princípio de comportamento o infeliz ditado segundo o qual “aquele que diz as verdades perde as amizades”. Pratica a lealdade sincera quando o nosso bem está em jogo. Certamente, não confunde a sinceridade com a franqueza rude, que se limita a nos lançar no rosto os nossos erros e defeitos em tom áspero e acusatório. Mas arrisca-se de bom grado a ser incompreendida, a ser tachada de pessoa moralista e intrometida, quando percebe que precisa nos falar clara e caridosamente, mas sem ambiguidades, e não hesita em praticar aquela excelente obra de misericórdia que consiste em “corrigir o que erra”, a fim de levar-nos a encontrar a retidão do caminho moral.

Calar-se, deixando o barco correr e afundar-se é, sem dúvida, mais cômodo. Alhear-se, ou até mostrar-se conivente com os erros alheios, atrai benevolências e simpatias. Mas é uma forma covarde de omissão e uma triste colaboração com o mal.


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Traços da bondade

Pessoa boa é, pois, aquela que exerce sobre nós uma influência benfazeja, uma influência que tem como efeito nos elevar, ajudar-nos a alcançar uma maior altura moral.

Por isso, a mulher ou o homem bons têm, principalmente, uma qualidade: o dom de despertar-nos do sono espiritual, da letargia moral, da mediocridade e da acomodação. São pessoas que nos impelem a “olhar para cima” e nos ajudam – sobretudo com o seu exemplo – a ver a bondade como uma meta acessível.

O ambiente que nos cerca leva-nos facilmente a ser medíocres. Os idealistas são poucos, e não raro parecem ingênuos ou tolos se os compararmos com muitos dos que vemos triunfar ou, pelo menos, singrar na vida: os egoístas, os espertos e os aproveitadores. Com efeito, aspirar a pautar a vida pela honestidade, pela fidelidade, pelo mérito, pelo desprendimento ou pela sinceridade – para falar apenas de algumas facetas do ideal moral – pode ser algo de muito belo na teoria, mas dá a impressão de ser muito pouco prático, pouco eficaz na luta pela vida. Na “selva” do mundo, o “bom” parece ser “bobo”.

Daí que, lá no fundo, muitos prefiram ser “como todo o mundo”. E se um idealismo maior lhes bate às portas da alma, afastam-no com desconfiança: não vamos complicar a vida – dizem -, não vamos ser tolos, é mais garantido ficar na “média”, como todos fazem; os Ícaros que pretendem voar muito alto com asas de cera acabam despencando no chão.

Até que, numa hora qualquer da vida, deparamos com uma mulher boa, com um homem bom. O primeiro choque que experimentamos ao tomar contato com essa pessoa é o desconcerto. Começamos a vislumbrar nela algo de inexplicável – pois foge aos padrões habituais – e, ao mesmo tempo, algo de estranhamente atraente.

Percebemos que é alguém que pensa de maneira diferente, vive de maneira diferente. Acredita em valores mais elevados, abraça-os com serena convicção e não vacila em pautar por eles a sua vida. Prescinde tranquilamente do que a maioria considera imprescindível para ser feliz: o egoísmo interesseiro, o comodismo, o culto do prazer e do bem-estar, o jogo de pequenos e grandes enganos para obter vantagens… Abraça com firmeza a honestidade, a dedicação desinteressada, o sacrifício, o amor serviçal, a renúncia voluntária, para fazer felizes os outros… Parece estar a um milímetro da utopia, da loucura ou da estupidez. E, no entanto, deixa-nos a impressão indestrutível de ser infinitamente mais alegre, mais realizado e vitalmente mais rico do que a massa anódina sobre a qual, mesmo sem o pretender, ele – ou ela – se eleva. Neles há como que um reflexo de Deus.

É por isso que o homem bom nos obriga a olhar “para cima” e também “por cima” dos nossos esquemas mentais e das nossas opções rotineiras. É como que uma bandeira que incita a entrar por caminhos novos, caminhos que lá no fundo da alma nós desejaríamos trilhar para curar o coração cansado de sábias espertezas e de prudentes mediocridades. E, com o seu exemplo, vem dizer-nos que esses caminhos são possíveis, ao passo que nos mostra o roteiro a seguir.

E é assim que a limpa autenticidade do homem bom faz-nos descobrir o norte, o verdadeiro norte da vida, e para ele nos atrai. Dele irradia, sem palavras, um apelo que nos sugere: vale a pena viver assim e é possível viver assim; se, com o auxílio de Deus, nós o conseguíssemos – livrando-nos de ser engolidos pelo que “todo o mundo faz” -, alcançaríamos a plenitude da paz e da felicidade que sempre almejamos e nunca, até agora, conseguimos conquistar.

(Adaptação de um trecho do livro “O homem bom” de padre Francisco Faus)