Uma nova ordem moral internacional

Uma nova ordem moral internacional

6. Em todo o caso, diga-se em abono da verdade que nos últimos quarenta anos, apesar de muitas dificuldade e atrasos, houve um notável progresso na realização da nobre visão do Papa João XXIII. O fato de quase todos os Estados do mundo se sentirem obrigados a honrar o conceito de direitos humanos demonstra quão poderosos sejam os instrumentos da convicção moral e da integridade espiritual. Tais foram as forças decisivas na mobilização das consciências que esteve na origem da revolução não-violenta de 1989, acontecimento esse que determinou a queda do comunismo europeu. E, embora noções deturpadas de liberdade, concebida como licenciosidade, continuem a ameaçar a democracia e as sociedades livres, é certamente significativo que, nos quarenta anos posteriores à Pacem in terris, tenham-se tornado mais livres muitas populações do mundo, tenham-se reforçado as estruturas de diálogo e cooperação entre as nações, e tenha sido eficazmente contida aquela ameaça duma guerra nuclear global, que se delineara drasticamente no tempo do Papa João XXIII.

A este respeito, quero com humilde ousadia fazer notar que a doutrina plurissecular da Igreja que vê a paz como « tranquillitas ordinis » – tranqüilidade da ordem -, segundo a definição de Santo Agostinho (De civitate Dei 19, 13) aprofundada na Pacem in terris, se revelou particularmente significativa no mundo contemporâneo, tanto para os Chefes das nações como para os simples cidadãos. A existência duma grande desordem na atual situação do mundo é constatação facilmente partilhada por todos; consequentemente a questão que se impõe é esta: Que tipo de ordem pode substituir esta desordem, para que os homens e as mulheres tenham a possibilidade de viver com liberdade, justiça e segurança? E uma vez que o mundo, mesmo na sua desordem, vai-se « organizando » em vários campos (econômico, cultural e até político), surge outra pergunta também premente: Segundo quais princípios se estão a desenvolver estas novas formas de ordem mundial?

Estas perguntas de âmbito muito vasto indicam que o problema da ordem nas atividades mundiais, ou seja, o problema da paz retamente entendida, não pode prescindir de questões relacionadas com os princípios morais. Por outras palavras, resulta, a partir desta perspectiva também, a convicção de que a questão da paz não pode ser separada do problema da dignidade e dos direitos do homem. Ora esta constitui precisamente uma das verdades perenes ensinadas pela Pacem in terris, que será bom recordar e meditar neste quadragésimo aniversário.

Porventura não é este o tempo em que todos devem colaborar para a constituição de uma nova organização de toda a família humana, a fim de garantir a paz e a harmonia entre os povos e, simultaneamente, promover o seu progresso integral? Importa, porém, evitar equívocos: aqui não se pretende aludir à constituição de um super-Estado global; a intenção é, antes, sublinhar a urgência de acelerar os processos já em curso que visam responder à solicitação quase universal de formas democráticas no exercício da autoridade política, quer nacional quer internacional, e também ao pedido de transparência e credibilidade a todos os níveis da vida pública. Confiando na bondade presente no coração de cada pessoa, o Papa João XXIII quis fazer apelo a ela, chamando o mundo inteiro a uma visão mais nobre da vida pública e do exercício da autoridade pública. Com audácia, impeliu o mundo a ultrapassar o presente estado de desordem e imaginar novas formas de ordem internacional à medida da dignidade humana.

A ligação entre paz e verdade

7. Contestando a perspectiva de quantos consideravam a política como um campo desvinculado da moral e sujeito apenas ao critério dos interesses, João XXIII, através da Encíclica Pacem in terris, delineou uma imagem mais autêntica da realidade humana e indicou o caminho de um futuro melhor para todos. Precisamente porque as pessoas são criadas com a capacidade de fazer escolhas morais, nenhuma atividade humana se situa fora da esfera dos valores éticos. A política é uma atividade humana; e, por conseguinte, está sujeita ao juízo moral. Isto vale também para a política internacional. O Papa escrevia: « A mesma lei natural que rege a vida individual, deve também reger as relações entre os Estados » (Pacem in terris, III: o.c., 279). Quantos defendem que a vida pública internacional de algum modo se desenrole fora do juízo moral, não podem deixar de refletir sobre o impacto dos movimentos a favor dos direitos humanos sobre as políticas nacionais e internacionais do século XX, há pouco terminado. Estes desenvolvimentos, que o ensinamento da Encíclica tinha previsto, contestam decididamente a pretensão de colocar as políticas internacionais numa espécie de « zona franca » onde não teria qualquer poder a lei moral.

Talvez não haja lugar onde se sinta tão claramente a necessidade de um uso correto da autoridade política, como na dramática situação do Médio Oriente e da Terra Santa. Dia após dia, ano após ano, a acumulação duma exacerbada rejeição recíproca com uma cadeia sem fim de violências e retaliações tem até agora arruinado toda a tentativa de abrir um diálogo sério sobre as questões realmente em causa. A precariedade da situação torna-se ainda mais dramática pelo conflito de interesses que existe entre os membros da comunidade internacional. Enquanto aqueles que ocupam lugares de responsabilidade não aceitarem corajosamente pôr em questão o seu modo de gerir o poder e de procurar o bem-estar dos seus povos, é difícil imaginar que se possa verdadeiramente caminhar para a paz. A luta fratricida, que abala diariamente a Terra Santa contrapondo entre si as forças que tecem o futuro imediato do Médio Oriente, coloca a premente exigência de homens e mulheres convictos da necessidade duma política assente no respeito da dignidade e dos direitos da pessoa. Uma tal política é incomparavelmente mais vantajosa para todos do que a continuação das situações de conflito em ato. É preciso tomar como ponto de partida esta verdade; será sempre mais libertadora do que qualquer forma de propaganda, sobretudo quando esta serve para dissimular intenções inconfessáveis.