Uma Experiência Missionária

Caros Irmãos em Cristo,

Eu e meu esposo, pertencemos à Comunidade Católica Canção Nova, que tem o carisma de evangelizar através dos meios de comunicação social. Fomos enviados em missão para o nordeste no período de junho de 2001 a junho de 2002, para trabalharmos na nossa geradora e produtora de TV em Aracajú, capital do Sergipe. Gostaria de partilhar uma das experiências mais bonitas que vivi, neste tempo em que estive no Nordeste.

Em contato com Dom Mário, Bispo de Propriá, uma das Dioceses que mais tem sofrido com o problema da seca, coloquei-me a disposição de ajudar, através de um documentário, pois não conseguia imaginar-me morando no Nordeste sem fazer nada diante do sofrimento de nossos irmãos. Dom Mário então, apresentou-me o Padre Isaías que tem acompanhado mais de perto a situação das famílias do Semi-árido, o sertão sergipano. O Padre Isaías expôs que, de todas as necessidades, a mais urgente na época, era a de instalar cisternas para as famílias que vivem num assentamento no município de Poço Redondo. São 700 famílias de diversas partes do nordeste, chamadas “sem terra”, que se uniram a movimentos populares e conquistaram do governo anterior terra e moradia, porém numa região que há 5 anos não chovia, num projeto chamado Jacaré-Curituba, por estar entre esses dois rios, infelizmente secos. Essas famílias viviam da esperança de que o governo prosseguisse com o projeto de irrigação, a exemplo do que fez com um outro Projeto, o Califórnia, já irrigado e produzindo, pois a terra do Nordeste, irrigada, é muito fértil. Porém o rio São Francisco, de onde viria a água para a irrigação, estava nesta época praticamente morrendo. Hoje essas famílias sobrevivem trabalhando como “Bóias-frias”, isso é: Trabalhando como diarista para algum patrão que possui a terra irrigada, sem carteira assinada. Conseguem trabalho uns dois dias na semana a 5 reais a diária… Isso para alimentar 6, 7 pessoas. Quando o desespero é grande, se obrigam a mendigar nas estradas. As poucas famílias que já possuíam as cisternas, adquiriram por intermédio da Igreja eram consideradas “ricas” entre as outras, pois possuíam um meio de sobreviver com dignidade, tirando água para o consumo da família e dos animais, irrigando uma pequena horta ou criando algumas cabras, ou gado que não é o melhor animal para o sertão.

Gostaria de partilhar um pouco do que foi para mim o primeiro contato que tive com a região do Semi-árido e as famílias que vivem nessa terra castigada pela falta de água: Na medida em que o carro ia avançando sertão adentro, a vegetação muda. É a caatinga rasteira e rústica, resistente ao sol e à seca. Mas até ela desaparece onde estão as famílias instaladas, dando espaço a um descampado triste e seco, fruto do desespero dos moradores de lá, que para não verem seus filhos morrerem de fome, derrubaram toda a Caatinga e a venderam transformada em carvão. Como disse o Padre Isaías: “O homem pobre e a natureza, por mais consciência que ele tenha, não conseguem viver em paz, quando está em jogo a própria sobrevivência”.

Chegando nas agro-vilas, a aparecia das casinhas bem feitas, escondem a verdadeira miséria daquele povo que tem teto, mas não tem água e pão.

Entre todos os sertanejos que conheci, encantei-me com o Seu Luiz, agricultor e poeta, um homem feliz e como ele disse, “muito rico”, pois possui uma cisterna, terra para plantar a “macaxeira” e uma casinha, coisas que seu pai nem sonhava em possuir. Um homem agradecido à Igreja, que o ensinou que sem união o homem não consegue nada nessa vida. Encantei-me com a sabedoria do seu Nestor que me chamava só de “dona menina”, um homem esclarecido que, se duvidar não sabe ler, mas sabe tudo sobre energia solar, sobre economia de comunhão. Mas o que mais me chamou atenção no seu Nestor foi a esperança… Ele espera a irrigação chegar nas suas terras. Faz planos, sonhos… Eu não sei em que pé anda a situação do Seu Nestor, se o governo anterior concluiu ou não o projeto Jacaré Curituba, mas conversando com o povo que mora nas terras irrigadas do projeto Califórnia, soube que cada dia mais a água do rio está sendo controlada por causa da seca, hoje eles estão limitados a somente 5 horas de água por dia e nenhuma água nos finais de semana. Por isso, indaguei de todas as formas que pude o Dionísio, um ambientalista autodidata, também filho do sertão, sobre alternativas para que o sonho daquela gente se concretize. Segundo ele, o única alternativa será a de revitalizar o rio São Francisco, através do reflorestamento em suas margens, isso em toda a sua extensão, começando lá em Minas Gerais. Um trabalho a longo prazo que exigiria conscientização e compromisso, coisa difícil de alcançar sem investimento e educação para a cidadania. A segunda opção era a de chover no sertão, chover mesmo, não só essas garoas que fazem crescer um mato superficial e frágil, que apenas aliviam os olhos do sertanejo: A chamada “seca verde”. Para que chovesse assim seria preciso novamente o reflorestamento e… um milagre.

Almoçamos na casa do Seu Nestor; o Dionísio contou que toda a comunidade ajudou, repartindo o que tinham: Comida bem feita com coentro e cominho, servida em panelinhas tão areadas que serviriam até de espelho, sinal do capricho das donas-de-casa do Sergipe que costumam deixar suas panelas brilhando, à vista das visitas. Pensei: “Vou servir pouco e comer devagar, para que não percebam e mais alguém possa comer…” Que dor no meu coração pensar que eu estava comendo o que faria falta para alimentar alguém que passa fome! Consolou-me ver que o Seu Nestor cria algumas cabras. À noite, depois da Missa, tomamos um café nordestino na casa de outra família: Leite de cabra, cuscuz, jirimúm… E eu que não sabia que o sertanejo salga o leite, para tomar com o cuscuz e o coloquei no café… Foi o primeiro café salgado que tomei em minha vida, pois seria um pecado jogar fora qualquer alimento naquelas condições… Devem ter pensado: “Essa gente do sul é boa gente, mas tem um gosto esquisito: Toma café salgado!…”

Nós nos queixamos de nossos problemas e caímos em depressão por tão pouco em nossas casas confortáveis, com nossas geladeiras cheias e água saindo por todas as torneiras… Como compreender a alegria, a hospitalidade, a coragem daquela gente que eu conheci lá no Sertão? Gente a margem da miséria, em suas casinhas plantadas no nada, cheias de esperança nas suas colheitas, mesmo tendo tido apenas uma colheita em 5 anos que estão instalados no Jacaré-Curituba. O Padre Melo, velho de guerra nesse Sergipe de Deus, falou com sabedoria: “Nós temos muitas coisas, por isso perdemos a esperança, que é só mais uma das coisas que possuímos, com facilidade. Mas essa gente do sertão, só tem a esperança, é a única coisa que possuem, por isso se agarram a ela. A esperança, eles não perdem.” A gente do sertão espera a irrigação de suas terras, que só poderá chegar se um milagre acontecer… E eu espero que eles não leiam esta carta e nunca saibam da minha apreensão de que seus sonhos possam não realizar-se, pois seria cruel demais roubar daquela gente a única coisa que ainda possuem.

À noite o padre Isaías marcou uma Celebração Eucarística. Chegamos na casinha onde seria a Santa Missa um pouco tarde e o povo já estava nos esperando. Acendemos uma fogueira para iluminar a noite e nos aquecer, pois se durante o dia no sertão senti muito calor ao ponto de ficar com a pele vermelha do sol, a noite, por ser um descampado, fazia frio, o que deu-me a impressão de estar num deserto. Aquela boa gente cantou e rezou lá do jeito deles e eu com o coração amargurado, olhando para as crianças e pensando no que será o futuro numa terra aparentemente sem futuro… Se fosse uma ou duas famílias: Mas 700… É muita gente! Até quando vão resistir sem migrar? É como uma bomba humana, pronta para explodir gente para as favelas das grandes cidades. Então rezei, clamei de todo coração a Deus por aquele povo! Eles são como o povo de Deus: Quantas vezes já não estiveram metidos em enrascadas piores e Deus os salvou?!

O nosso Deus é o Deus do impossível, é O que escolhe os fracos para confundir os fortes, é O que vence exércitos com poucos homens, até abrir um mar Ele já fez para salvar seu povo… Então porque perder a esperança? O povo do Nordeste tem razão: Não são de perder a esperança para a sua ruína, eles confiam e esperam em Deus. Esse é o segredo dessa gente: Sua fé resiste como as pequenas flores que vemos nascer em meio a pedras e a terra seca da terra onde vivem. O povo do sertão semi-árido só pode contar com Deus e é aí que entra o nosso papel como cristãos.

São Paulo, ao perceber que a comunidade de Jerusalém estava empobrecida, não apelou aos cristãos de uma comunidade mais abastada que se mobilizassem para os ajudar?! Se somos irmãos, realmente irmãos… Como podemos admitir que irmãos nossos não possuam nem água potável para beber? E o que fazer concretamente?

De imediato aquelas famílias precisam de água para suas necessidades básicas. Não adianta pensar em poços porque a água de lá é salobra, o único jeito é através de cisternas, uma espécie de caixa dágua para grande quantidade. A diocese de Dom Mário já conseguiu desenvolver uma forma para a construção de cisternas e, à custa de muitos sacrifícios e projetos, 7 cisternas já tinham sido construídas, na ocasião de minha visita e estavam sendo de utilidade comunitária, mas eram insuficientes, uma gota dágua no oceano. Uma das famílias favorecidas pela cisterna, testemunhou que antes caminhavam 5 quilometros para buscar água e precisavam retirar animais mortos da água que depois serviria para beber, fazer comida, dar banho nas crianças. A construção de cada cisterna custa em média de 850 reais, não é muito levando em consideração que durará 20 anos servindo a comunidade. Aqui entra a nossa parte: O Padre Isaías, que está a frente deste trabalho, precisa de material de construção, ou de dinheiro para comprá-lo, precisa muito de uma caminhonete para transportar o material… Precisa de todos nós cristãos, para que o nosso testemunho de solidariedade se una ao testemunho de fé do povo do Sertão, para que possamos dizer juntos: ”Sabemos em Quem depositamos nossa esperança e não fomos decepcionados”.

Penso em Dom Mário, um pobre Bispo do Sertão como ele diz, que além destas 1.350 famílias assentadas que vieram de outros municípios e estados, possui na sua diocese de Própria: uma aldeia Indígena, os Xokó e um kilombo de negros, sem contar todo o resto do povo empobrecido pela seca. Penso no homem de Deus e no guerreiro que ele é e sinto orgulho por ser católica, pois posso dizer, para concluir, sem medo de errar, que neste trabalho silencioso e oculto que a nossa Igreja desempenha no sertão do Sergipe, está a única razão daquele povo resistir a fome, a imigração e à morte. Isso é viver plenamente o Evangelho, pois foi Jesus quem disse: Eu vim para que todos tenham vida!


Se você quiser entrar em contato com Padre Isaías, responsável pelo projeto da construção de Cisternas no Sertão da Diocese de Própria em Sergipe, é só mandar um e-mail para:

isaiasnfilho@yahoo.com.br