Serão os dois um só, homem e a mulher

2. Entre os “mitos de origem”, ou seja, tradições, normalmente religiosas, que explicam a origem da humanidade, há uma entre os povos orientais que me permito referir aqui, porque nos ajuda a encontrar o contexto para a leitura dos textos bíblicos de origem, do Livro dos Gênesis. Conta essa tradição mítica que, no início da humanidade Deus criou um único ser, que reunia em si todas as características do masculino e do feminino. Mas esse ser revelou-se de tal maneira forte que os deuses o temeram. Para o enfraquecer dividiram-no em dois, o homem e a mulher que, assim separados, ficaram mais fracos. É por isso que, desde esse dia, o homem e a mulher procuram unir-se de novo, para recuperar a força perdida. Sugere-nos a narração bíblica, que põe na boca de Deus Criador esta afirmação: o homem e a mulher serão os dois um só. (c.f Gen. 2,24; Mt. 19,5).

Os textos do Gênesis (Gen. 2,7-25 e 1,26-31) são narrações de origem, que aliás integram “mitos de origem” oriundos de outras culturas, em que o autor sagrado introduz a especificidade da revelação. Os dois textos são complementares e, em conjunto, comunicam-nos a primeira compreensão bíblica do mistério do homem, que só viria a ser totalmente revelada em Nosso Senhor Jesus Cristo. Deles ressaltam os seguintes traços característicos do homem:

* A Corporeidade do homem: trata-se de um ser único em toda a criação. Corpóreo como todos os outros, mas a sua vida não é apenas biológica, depende do sopro de Deus. “Deus modelou o homem com o barro da terra e insuflou nas suas narinas um espírito de vida e o homem tornou-se um ser vivo” (2,7). A vida do homem exprime-se no corpo, mas é espiritual, tem a sua origem no sopro divino. Esta é uma chave decisiva para a interpretação da sexualidade humana que exclui espiritualismos radicais que excluam o corpo, ou visões fisicistas que não respeitem as exigências do espírito.

* A criação do homem (no sentido de ser humano) só fica completa com a criação da mulher. Esta é introduzida com a declaração solene de que a solidão não é boa para o homem: “não é bom que o homem esteja só” (2,18). A diferenciação dos sexos é o caminho escolhido por Deus para que o homem e a mulher vençam a solidão. “É bom que Eu lhe faça um complemento para que se possa unir a ele” (2,18). Repare-se que a ameaça da solidão não é, automaticamente, vencida. A sua possibilidade está unida à autonomia de cada um dos seres humanos. Em toda a dinâmica desta narração está subjacente o problema da liberdade e da iniciativa humanas: o homem é chamado a colaborar na obra da criação. Está dito que não é bom, nem para o homem, nem para a mulher, estarem sós. Mas eles têm de se descobrir um ao outro para serem completos e fortes e vencerem a solidão. Nessa descoberta mútua um do outro, eles reconhecem-se como pessoas, isto é, como seres em relação.

* A experiência de comunhão representa para os seres humanos a sua força e a sua plenitude. A reação de Adão à criação de Eva é o primeiro poema de amor da história da humanidade: “Esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (2,23). João Paulo II considera este texto o protótipo bíblico do Cântico dos Cânticos. “O texto conciso de Gén. 2,23 que revela as palavras do primeiro homem ao ver a mulher criada, «arrancada dele», pode ser considerado como o protótipo bíblico do Cântico dos Cânticos. E se é possível detectar impressões e emoções ao ler palavras tão antigas, poderíamos arriscar dizer que a profundidade e a força desta primeira emoção, desta emoção «original» experimentada pelo homem, ser masculino diante da humanidade da mulher e, ao mesmo tempo, perante a feminilidade de outro ser humano, é verdadeiramente única e irrepetível” 2.

Segundo o Livro dos Génesis, o homem e a mulher só vencerão a solidão e encontrarão a sua força, neste encantamento mútuo de uma comunhão de amor.