Paz precária

A mensagem de paz deste primeiro de janeiro de 2003 lembra a famosa encíclica “Pacem in Terris”, escrita por João XXIII, há exatos quarenta anos atrás. Nela, o “papa bom”, lembrava os quatro pilares, sobre os quais a paz verdadeira precisa se assentar, para ser autêntica e duradoura: a verdade, a justiça, o amor e a liberdade. Faltando um desses componentes, a paz não é completa, nem tem perspectivas de durar.

Em sua explicação, João XXIII dizia que estes valores precisam presidir tanto o relacionamento pessoal, na convivência cotidiana, como as relações das instituições no contexto da sociedade, e igualmente o relacionamento das nações em nível mundial.

Mas a encíclica do Papa, naquela época, repercutiu positivamente não só pela sabedoria dos seus conselhos, mas pelo testemunho pessoal de quem os dava. Dois meses após sua publicação, João XXIII vinha a falecer. Sua mensagem de paz servia de testamento à humanidade, no momento em que tinha chegado ao auge do perigo de uma guerra atômica, que colocava em risco a sobrevivência da espécie humana.

Foi a crise dos mísseis de Cuba, no final de 1962. Vale a pena recordar os lances. O mundo estava em plena guerra fria, com as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, impondo a ordem do medo e o equilíbrio da força. As posições de domínio estavam bem delimitadas, e ninguém podia alterar suas fronteiras.

Foi então que a União Soviética, governada por Nikita Kruchov, planejou o golpe que lhe daria condições de ameaçar de perto os Estados Unidos. Começou a montar em Cuba seus mísseis, destinados a transportar as ogivas atômicas, que poderiam ser despejadas sobre os Estados Unidos com rapidez maior do que a capacidade americana de prevenção.

Os Estados Unidos, liderados pelo presidente John Kennedy, perceberam a fatalidade do golpe. E urgiram que a União Soviética sustasse o avanço do navio que já estava próximo a Cuba, trazendo os componentes dos mísseis, ameaçando imediata retaliação atômica.

Por momentos, o mundo viveu o suspense da deflagração do conflito atômico incontrolável. Era o auge da estupidez humana, que tinha criado a capacidade de autodestruição, e a tinha colocado à mercê das ambições de ilusórias hegemonias.

O equilíbrio do medo funcionou novamente. O projeto da União Soviética foi abandonado, Nikita Kruchov vestiu a carapuça de anjo da paz, e John Kennedy se cobriu da áurea de defensor da pátria.

Agora, 40 anos depois, a paz do mundo continua ainda precária. Talvez mais precária do que nos tempos da guerra fria. Pois naquela época havia, ao menos, o consenso prévio do respeito às posições existentes. Agora, a decisão de fazer a paz ou de ir à guerra parece depender dos humores do presidente da única superpotência militar, que esnoba seu poderio diante da humanidade calada em sua impotência de fazer valer os quatro pilares da paz, anunciados com tanta clareza e limpidez por João XXIII.

Pior ainda. O único “consenso” que permanece intocável é o respeito e a submissão ao poderio financeiro do capital supranacional, diante do qual se inclinam reverentes os governantes e os povos do mundo, mesmo que alquebrados sob a injusta extorsão dos juros e sob o peso da situação de miséria que resulta da ambição do capital.

Sabemos agora quanta injustiça subjazia à paz imposta pelo medo das bombas. No alvorecer deste novo milênio, emerge com evidência o desafio para a comunidade internacional: reformular as relações econômicas, reestruturar os organismos que as comandam, e repensar a destinação dos frutos do progresso, para que o mundo conheça uma era de paz verdadeira, fundada na verdade, na justiça, no amor e na liberdade, como ainda nos lembra o bom Papa João.