O rosto de Cristo na prova

Viver a espiritualidade num contínuo partir de Cristo significa iniciar sempre do momento mais alto do seu amor — e a Eucaristia lhe conserva o mistério —, quando sobre a cruz, entrega Ele a sua vida, na máxima oblatividade. Os que foram chamados a viver os conselhos evangélicos mediante a profissão não podem deixar de freqüentar a contemplação do rosto do Crucificado. É o livro em que aprendem o que é o amor e como Deus e a humanidade devem ser amados, fonte de todos os carismas e síntese de todas as vocações. A consagração, sacrifício total e holocausto perfeito, é a forma a eles sugerida pelo Espírito para reviver o mistério de Cristo crucificado, que veio ao mundo para dar a sua vida em resgate por muitos (cfr. Mt 20, 28; Mc10, 45), e para responder ao Seu amor infinito.

A história da vida consagrada expressou esta configuração a Cristo através de muitas formas ascéticas que «foram, e continuam a sê-lo, um auxílio poderoso para um autêntico caminho de santidade. (…) A ascese é verdadeiramente indispensável para a pessoa consagrada permanecer fiel à própria vocação e seguir Jesus pelo caminho da Cruz». Hoje, as pessoas consagradas, embora conservando a experiência dos séculos, são chamadas a encontrar formas que sejam concordes com este nosso tempo. Em primeiro lugar, as que acompanham a fadiga do trabalho apostólico e garantem a generosidade do serviço. Atualmente, a cruz que se há de tomar sobre si a cada dia (cfr. Lc 9, 23) pode adquirir também valores coletivos, como o envelhecimento do Instituto, a inadequação estrutural ou a incerteza do futuro.

Em face a tantas situações de sofrimentos pessoais, comunitários e sociais, do coração de cada pessoa ou de inteiras comunidades pode ecoar o grito de Jesus na cruz: «Por que me abandonaste?» (Mc 15, 34). Naquele grito dirigido ao Pai, Jesus deixa entender que a sua solidariedade com a humanidade se fez tão radical a ponto de penetrar, de compartilhar e de assumir nela tudo o que há de negativo, inclusive a morte, que é fruto do pecado. «Para transmitir ao homem o rosto do Pai, Jesus teve não apenas de assumir o rosto do homem, mas de tomar inclusivamente o “rosto” do pecado».

Partir de Cristo significa reconhecer que o pecado está ainda radicalmente presente no coração e na vida de todos, descobrindo no rosto sofredor de Cristo aquela oferta que reconciliou a humanidade com Deus.

Ao longo da história da Igreja, as pessoas consagradas souberam contemplar o rosto dolorido do Senhor também fora de si mesmas. Reconheceram-no nos enfermos, encarcerados, pobres e pecadores. A sua luta foi, sobretudo, contra o pecado e as suas funestas conseqüências. O anúncio de Jesus: «Convertei-vos e crede no Evangelho!» (Mc 1, 15) moveu seus passos pelas estradas dos homens, dando esperança de novidade de vida onde reinava desencorajamento e morte. O seu serviço levou a que muitos homens e mulheres fizessem a experiência do abraço misericordioso de Deus Pai no Sacramento da Penitência. Também hoje há necessidade de se propor com força, uma vez mais, este ministério da reconciliação (cfr. 2 Cor 5, 18), confiado por Jesus Cristo à sua Igreja. É o mysterium pietatis, do qual os consagrados e as consagradas são chamados a fazer uma freqüente experiência no Sacramento da Penitência.

Mostram-se hoje novos rostos nos quais reconhecer, amar e servir o rosto de Cristo lá onde Ele se fez presente: as novas pobrezas materiais, morais e espirituais que a sociedade contemporânea produz. O grito de Jesus na cruz revela como Ele assumiu sobre si todo este mal a fim de o redimir. A vocação das pessoas consagradas continua a ser a de Jesus e, como Ele, assumem elas sobre si a dor e o pecado do mundo, consumando-os no amor.

Papa João Paulo II, da Instrução Partir de Cristo, de 14 de junho de 2002