Lealdade à Igreja e à Doutrina

Em sua Exortação Apostólica pós-sinodal “Ecclesia in Oceania”, com data de 22 de novembro último, o Papa, ao falar sobre a educação católica, aos professores e administradores de escolas, afirma que eles devem ser “leais à Igreja e à sua doutrina” (nº 33). Bem podemos avaliar a importância do alto grau de lealdade que deve ornar o caráter do eclesiástico e pessoas consagradas, sem excluir os leigos.

Vivemos numa época profundamente marcada pelo hedonismo, a busca do prazer sem restrições, a proclamação de um direito de ser feliz a qualquer preço na existência terrena. Trata-se de uma falsa concepção do ser humano criado por Deus. Somos destinados pelo Senhor a uma eternidade feliz, que é o resultado de uma vida conforme os caminhos indicados por Ele. Devemos fazer uma opção, fruto do livre arbítrio. Do seu bom uso depende a eternidade no seio do Pai. Dois outros elementos se inserem em nosso comportamento: o relativismo total e o subjetivismo egoísta. Eles enfraquecem nossas deliberações e abrem caminho a erros, que têm suas conseqüências ainda em nossa existência temporal.

Deus nos outorgou uma doutrina. Somos livres para observá-la, mas daremos contas do bom ou mau uso da liberdade, de nossa conduta, da interpretação subjetiva que cria obstáculos à prática do bem ou são indicadores de falsas veredas que não nos levam ao Criador.

Deduz-se dessa consideração o dever fundamental de lealdade à Igreja e à sua doutrina. Impressionante constatar o nexo entre a dignidade, sob o ponto de vista temporal e o comportamento em relação a tudo o que se refere ao religioso. Um homem de caráter pauta sua vida por valores humanos e sobrenaturais, independentemente da crença religiosa. Age de maneira totalmente diferente de um outro, destituído de princípios que integram a dignidade, mesmo que em nível meramente terreno. Essa afirmativa poderá ser constatada, observando-se a atitude de alguém em escritos, conversas, reações a episódios, revelando a vida particular. O bom caráter de uma pessoa leva-a a manifestar-se com dignidade e, caso contrário, a aproveitar-se da ocasião para o extravasamento de sua deformação moral. Essa observação se aplica a qualquer um, independente deste ou daquele credo. Em outras palavras: a falta de nobreza se revela nas mais diversas oportunidades, de maneira particular contra uma doutrina religiosa que se opõe às más tendências ou cria obstáculos à satisfação de baixos instintos.

A razão mais profunda desse comportamento é ser o homem co-responsável pela sua história. Sua vida está condicionada a três fatores: o ambiente em que vive, – ou agradável ou perverso -; os instintos inerentes à própria natureza; o cultivo de sua inteligência e seu uso correto. Aqui está o ponto fundamental para a construção de todo o futuro: ou aceita o cumprimento do dever, mesmo à custa de sacrifícios impostos por valores morais e religiosos ou cede ao imediatismo do simples prazer, foge à luta por um ideal nobre. Se fracassa, para justificar-se, torna-se veículo e defensor dos elementos que o derrotaram. Toda vez que ele, conhecendo valores supremos, faz covardemente concessões ao interesse do momento, ou a pressões indevidas, ele entra em crise, inverte sua vida, degrada seu ideal.

Aqui se situa a importância da declaração do Papa João Paulo II, em seu recente documento “Ecclesia in Oceania”: “lealdade à Igreja e à sua doutrina.”

Para o cristão, a questão é de suma importância. São Paulo formula isto com uma intransigência sem igual: “Alguém pagou alto preço pelo nosso resgate; não vos torneis escravos dos homens” (1 Cor 7,23). No cristão há uma profunda coerência em tudo o que Deus opera em nossa vida como um todo – corpo e alma -, comportamento social e responsabilidade no mundo. Ela está expressa em São Paulo (Rm 12,2): “Não vos conformeis com este mundo mas transformai-vos, pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito”.

Se o Evangelho é a Revelação de Deus aos homens, a aceitação plena do mesmo, sem subterfúgios, é um dever de cada fiel. Atraiçoa Jesus quem submete seu ensinamento a um relativismo que torna o corpo doutrinário sujeito às interpretações que cada um lhe quiser dar.

Diante destas considerações, bem podemos avaliar a importância de ser “leais para com a Igreja e sua doutrina”. Ela não nos ensina uma moral mais ou menos conveniente. É guardiã do divino legado que nos veio de Jesus e de seus Apóstolos. Quando fala, baseia-se no fundamento único: a Revelação transmitida pelo Magistério autêntico. Esse comportamento é uma tradução prática de nossa fidelidade ao Fundador.

Como em toda sociedade de homens, há na Igreja leis e normas relativas mas, no caso, nunca em contradição aos princípios eternos. Em questões em si não imutáveis, pode-se aferir nosso amor ao Cristo pela coerência com os ensinamentos de sua Igreja. Agir assim é optar pelo rumo que deve nortear o católico nos problemas relacionados à evangelização.

Todo cristão deve se questionar se ele, servindo a seus próprios caprichos ou aos instintos da vida meramente animal, ou se ele opta realmente pelo Cristo e sua lei nova, como última norma de vida. Se Jesus Cristo é o Filho de Deus feito homem, então tudo – a cultura, os interesses grupais, a política – deve ser visto e julgado à luz desse Cristo: “Cristo é a medida de toda cultura” (João Paulo II).

Um exame profundo de nossa consciência, do comportamento pessoal, de reação às pressões da opinião pública, à luz do ensinamento de Cristo transmitido pela Igreja é um excelente exercício neste período quaresmal.

Cardeal Eugênio de Araújo Sales
Arcebispo Emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro