Jesus e o fundamentalismo
Uma questão que hoje tem aflorado em nível universal é a do fundamentalismo. Seu projeto é construir uma sociedade teocrática na qual a religião oficial ditará as diretrizes e as leis e moldará os costumes, sem espaço para uma visão divergente. É, ainda, a tendência de encontrar na religião, ou no livro sagrado que a inspira, uma resposta para todas as questões, independentes de sua natureza. O fundamentalismo implica a exclusão do pluralismo e a afirmação do caminho único.
Encontramos essa prática em várias religiões, em diferentes níveis e em períodos diversos. As autoridades eclesiásticas da Idade Média, ao afirmar que a terra era o centro e o sol girava ao seu redor, foram fundamentalistas atribuindo à Bíblia uma competência científica que ela não possuía. A Bíblia contém uma mensagem religiosa, apenas retrata as concepções científicas e culturais de uma época, que não constituem objeto de fé daquele que crê.
O poder político e o poder sagrado ou
religioso são dois horizontes,
independentes e soberanos
Neste Natal, quando pensamos em Jesus, perguntamos se ele teria algo a ver com o fundamentalismo. E em caso positivo, qual seria o seu pensamento?
Há uma passagem no Evangelho muito ilustrativa. Em Mateus 22, 15-22, os fariseus, numa artimanha, propuseram a Jesus a questão da legalidade ou não do pagamento de impostos a César. Se ele fosse favorável aos impostos, poder-se-ia dizer que era um entreguista, alguém conivente com a dominação romana, sem brio nacionalista e contra a teocracia judaica. Se ele fosse desfavorável, poderia ser acusado de conspiração contra o Império, de subversivo, e ser preso pelas autoridades romanas. Jesus lhes solicita uma moeda com a qual se pagava o imposto, e depois de os fariseus identificarem a imagem de César nela gravada, dá a célebre resposta Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
A resposta deixou os inquiridores perplexos, e para nós o Mestre deu a lição da independência da sociedade civil em relação à sociedade religiosa, do Estado em relação à religião. O poder político e o poder sagrado ou religioso são dois horizontes, independentes e soberanos, os quais não devem ser superpostos. Isso não significa que o Estado possa praticar a arbitrariedade e a violência, antes dispõe da razão para traçar os seus limites, estabelecer normas e leis que assegurem o bem comum e o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos. O instrumental do Estado é a razão e não a fé, são as luzes naturais e não o texto religioso. A razão pode se beneficiar da perspectiva de Deus, assim como a fé pode ser esclarecida pela razão, mas exclui definitivamente que uma religião particular, qualquer que seja, assuma o poder político e se confunda com o Estado.
O Estado (César) e a religião (Deus) representam duas realidades distintas, com seus próprios espaços e atribuições, segundo Jesus: confundi-los seria péssimo para ambos. Seria ruim para o Estado que tem a obrigação de acolher e respeitar todas as religiões, desde que não conspirem contra o bem comum; e seria também ruim para a religião que se corromperia no exercício do poder político e perderia, inclusive, sua capacidade de julgar e criticar o Estado. Em uma das vezes que a religião e o Estado se uniram, foi justamente para condenar Jesus à morte.
Observamos, contemporaneamente, tentativas de substituir César por Deus – um projeto que nem Deus mesmo quer, segundo a perspectiva cristã. Mas no século passado também observamos a pretensão equivocada de substituir Deus por César, no caso do ateísmo professo do Império Soviético. Não deu certo. Fracassou. Eliminar Deus pode ser uma tarefa inglória e impossível. E o Deus que resulta da eliminação de César é uma caricatura, e a sociedade que produz, um arremedo.
Essa, afinal, a lição de Jesus.
Fonte: Zero Hora