Isso não é problema MEU!

Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía‘ (At 4,32)

Com frequência ouvimos as expressões: “isso é problema teu”, “ela que se vire”, “eu vou ficar na minha”, “cada um por si e Deus por todos”. Podem até ser frases comuns, nas quais não vemos muito sentido, contudo, se olharmos em maior profundidade, veremos que falam fortemente do espírito presente em nossa sociedade e, o que é pior, no seio das comunidades cristãs.

O Projeto Ser Igreja no Novo Milênio (SINM), assumido pela Igreja no Brasil, convida a olharmos para os primeiros cristãos e resgatar a vivência mais genuína do cristianismo. Testemunhos mostram que muitas comunidades e grupos estão se revigorando a partir do estudo dos Atos dos Apóstolos.

E é justamente no retrato das comunidades de Atos que está presente uma prática cristã que contrasta frontalmente com este espírito individualista vigente. Lá se lê que ‘A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum‘ (At 4,32).

Pode até ser um retrato ideal, um sonho de Igreja jamais existente na prática, como afirmam alguns, todavia, penetrando um pouco mais o olhar veremos que sem esse espírito de doação e partilha dificilmente existe vida comunitária e seguimento autêntico a Jesus Cristo. Para comprovar isso, pensemos nas comunidades e grupos dos quais já participamos ou estamos participando. Olhemos o número dos batizados e o número daqueles que vão às celebrações aos finais de semana e em contrapartida, pensemos também no engajamento concreto das pessoas nos diversos serviços da comunidade, ou mesmo em outros grupos sociais, na gratuidade e partilha nas suas relações diárias dentro e fora da comunidade.
Quantas reações nada evangélicas da grande maioria ao ser convidada para servir nalguma atividade da comunidade, quanta falta de comprometimento com as reais necessidades dos irmãos e irmãs. A falta de tempo é alegada para esconder, às vezes, uma profunda ausência de espírito comunitário, um “considerar exclusivamente seu” o que possui.

Lideranças, sacerdotes e outras pessoas que animam mais diretamente as comunidades, falam do crescimento desse espírito anti-cristão nas comunidades, fazendo com que as atitudes de generosidade, partilha, serviço, tão características da fé cristã, sejam minadas pelo individualismo presente em toda parte na sociedade, até no ar que respiramos. Tal constatação pode até parecer muito negativa, ou ser vista como incapacidade de ver tanta coisa bonita que está acontecendo nas comunidades. É bom ressaltar que tudo isso não está sendo negado ou ignorado. Porém, é urgente refletir e perceber que esse espírito, tal qual um veneno mortífero, está presente nas nossas relações comunitárias e se não nos dermos conta, pode acabar com a verdadeira vivência do cristianismo.

Vale dizer que não se trata apenas de partilha material – embora isso seja imprescindível para o andamento da evangelização –, mas de uma orientação interior da própria vida a exemplo de Jesus. Ele passou pela vida fazendo o bem, totalmente voltado para os outros. Sua vida pode ser resumida como partilha, porque tudo o que era e possuía estava voltado para as necessidades das pessoas e não de si mesmo. Em suas relações, em seu encontro com as pessoas, deixava sempre algo de si e era capaz de abrir-se para receber delas também.

Sinal mais contundente desse espírito de partilha é a multiplicação dos pães, narrada pelos quatro evangelistas e o dom total de si mesmo na Eucaristia e na cruz. Jesus entregou-se todo, por inteiro, e até hoje continua a entregar-se, totalmente disponível para que tenhamos vida. E vida em abundância.

O livro dos Atos narra em diversas passagens a atitude nova que a Palavra suscita nas pessoas, levando-as à partilha dos bens e dos dons e isso era a verdadeira novidade da vida cristã, que encantava e questionava as pessoas daquela época. Não se tratava de um testemunho vazio, de belas palavras sobre um homem que vencera a morte. Tratava-se de uma nova prática emanada de uma pessoa viva – Jesus Ressuscitado – e isso enchia a vida de um sentido novo, não se podendo mais viver sem ser como Ele foi, sem fazer como Ele fez. Por trás do “não considerava exclusivamente seu o que possuía”, está a prática genuína do jeito de Jesus que desafia: “quem quiser salvar sua vida vai perdê-la, mas quem perder sua vida por causa de mim, vai ganhá-la” (cf. Mc 8,35) e ainda: “o que adianta ganhar o mundo todo se vier a perder a sua vida?” (cf. Mc 8,36).

Não é isso que se comprova olhando a vida de tantas comunidades e pessoas? Quanto mais voltados para si mesmas, quanto menos partilham, quanto menos se interessam pelos outros, mais tristeza, mais falta de sentido, mais stress e depressão. Por outro lado, quanto maior a partilha, o envolvimento com os que sofrem, quanto mais doação de vida, mais alegria, mais força e sentido para viver, comprovando o que dizia o que dizia Paulo: ‘há maior alegria em dar do que em receber‘ (At 20,35).

Portanto, voltar ao espírito das primeiras comunidades é mais do que necessário hoje. É encontrar, de novo, o antivírus capaz de deter o individualismo, negação do cristianismo que tem movido as relações das pessoas em comunidade e sociedade, é deixar-nos converter mais uma vez pela genuinidade do Espírito do Ressuscitado e ser verdadeiramente felizes.

Ir. Suzimara B. Almeida, IJBP
Fonte: “O Cooperador Paulino”, janeiro-março 2002.