Degredados?

É muito comum ouvirmos na oração da Salve Rainha, alguns fiéis dizerem “A vós bradamos degradados filhos de Eva´´ invés de degredados filhos de Eva, como é o correto. A diferença está em que degredados significa ´´desterrados, exilados, banidos“, enquanto degradados quer dizer “privados dos graus, da dignidade; tornados vil ou desprezível; diminuirdos gradualmente”.

Curiosamente, colocando esta outra palavra, por desconhecer o sentido exato ou por ter aprendido erroneamente, expomos a outra condição da vida humana, ou seja, além de vivermos num exílio neste mundo, também perdemos a dignidade e nos aviltamos ante o pecado.

Provavelmente troquemos as palavras inconscientemente, uma vez que, logo após cometerem a culpa original, Adão e Eva, antes de receberem a sentença de exílio, experimentaram a degradação ao perderem o “grau de intimidade” com Criador e logo sentiram medo por sua nudez. (Gn 3,10).

Uma lenda fala do início da humanidade sem trabalho servil, sem cansaço, sem necessidade de bens, de casas, roupas, trabalho e isenta de males.

Deus então veio observar o mundo e viu que apesar de tudo de bom que possuíam, os homens estavam infelizes e se desentendiam uns com os outros, vivendo de forma egoísta, cada um por si.

Para fazê-los entender o valor da vida Deus então colocou as coisas de tal forma que a humanidade não poderia viver sem trabalhar e assim o homem passou a sentir sede, fome, frio e calor, obrigado a plantar e colher, a construir moradias, fazer suas próprias roupas e preparar seu alimento.

O trabalho os manterá ocupados, cooperando uns com os outros, unidos enfim – disse o Criador.

Tempos depois o Senhor veio ver como estavam suas criaturas e constatou que as coisas estavam piores. Agora trabalhavam juntos, mas desunidos e em grupos distintos, debatendo-se, atrapalhando-se, desperdiçando suas energias. Diante disto Deus decidiu que a única maneira de melhorar as coisas no mundo seria dispô-las de modo que os homens não soubessem a hora de sua morte além de ficarem sujeitos a morrer a qualquer momento.

Com isto, sabendo que a vida pode lhes ser breve, se desapegarão das coisas, entender-se-ão bem e viverão felizes – imaginou Deus.

Mas ainda assim as coisas não deram certo, o Criador viu que os mais fortes abusavam dos mais fracos, obrigando-os a trabalhar ao limite de suas forças sob a ameaça de morte e assim os poderosos passaram a viver no ócio enquanto os fracos ficavam dominados e cada vez mais explorados. Para dar uma última oportunidade o Criador, nesse momento, permitiu que as enfermidades atingissem a humanidade.

– Quem sabe assim se entenderão ao sentirem pena pelo dor do outro, manter-se-ão unidos, ajudando-se mutuamente – falou Deus com os seus anjos.

Passado um longo tempo, volta o Senhor para a saber como andavam as coisas e constata que nada havia melhorado. Muito ao contrário. Os que adoeciam pelo trabalho exaustivo eram abandonados pelos mais fortes e saudáveis e os poderosos agora colocavam os doentes à distância para que a visão dos enfermos não os incomodasse e não houvesse risco de contaminação. Os enfermos padeciam longe dos seus familiares e amigos, abandonados, e uns poucos velhos e doentes eram entregues a empregados que não os tratavam com a devida compaixão e zelo.

Segundo a lenda, por fim, decepcionado com suas criaturas, vendo que nada conseguia fazer o homem uma criatura livre e feliz, Deus retirou-se para sempre e deixou a humanidade entregue a si mesma. Logo veio o sofrimento, aflição, as desgraças e os infortúnios e quem sabe assim aprenderiam os homens a viver bem entre si, se amar e valorizar tempo de vida que lhes cabia neste mundo.

Lendas à parte, sabemos que Deus não criou o mundo e o entregou à própria sorte.

Se assim tivesse agido não seria um Deus justo e Pai amoroso que é. A humanidade sim, aviltada pelo pecado, cada vez mais foi se perdendo em seus atos e decisões e abandonou a Graça da Presença divina.

Na Bíblia o salmista sente a dor de estar no exílio, longe de Deus, e clama:

Ó Deus, não vos afasteis de mim. Meu Deus, apressai-vos em me socorrer. (Sl 70,12).

Este grito Ó Deus, não vos afasteis de mim reflete o antigo conceito de um Deus melindroso, suscetível, que se afastava e abandonava seus filhos rebeldes, no entanto nos mostra o sentimento de perda da intimidade, tão intensa no princípio da criação.

O profeta Jeremias contudo tem consciência desse afastamento do homem de seu Deus, e proclama:

Confundidos serão os que vos abandonam e de vergonha serão cobertos os que de vós se afastam, por haverem deixado o Senhor, fonte das águas vivas (Jr 17 13).

S. João vem explicar em seu Evangelho que Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único que está no seio do Pai, foi quem o revelou (Jo 118). Jesus, Deus Filho, nos revelou o Pai bondoso, amoroso e sempre presente, pleno de um amor incondicional apesar de toda a ingratidão humana.

Estamos, de fato, ainda degredados e degradados, mas não abandonados, jogados num mundo sem futuro, sem esperança.

Em seu Filho o Pai nos concedeu o resgate a um altíssimo preço – imensa graça – e basta que recuperemos a intimidade primeira e ainda neste exílio encontraremos a felicidade que em plenitude teremos na eternidade ao lado do Senhor Deus, Pai de Amor de Bondade.