A crise da Igreja, hoje III

Este é o quarto artigo sobre a crise da Igreja, o terceiro sobre “a crise da Igreja, hoje”. Estou apresentando aspectos que considero componentes desta crise.

Primeiro, a eterna crise gira em torno da identidade e da “práxis” de Jesus.

Segundo, tanto em teologia, quanto em pastoral, predominam as preocupações éticas, em detrimento do Evangelho. Terceiro, em conseqüência, a crise consiste em crise do sobrenatural. Insisto neste terceiro componente, ainda que me repita. Ele brota e se solidifica na consideração da encarnação do Verbo. Costuma-se dizer que, se o Verbo se encarnou, ele se fez um de nós e se inseriu na história humana. Em conseqüência, insiste-se: importa salientar, mais ainda, privilegiar o humano e o histórico nos indivíduos e na Igreja.

Respondi que se isso é uma parte da verdade, não constitui, porém, a verdade toda. Pois, se é verdade que o Verbo, ao se encarnar se fez humano e se inseriu na história, é mais verdade ainda que ele não baixou até nós, simplesmente nivelando-se a nós, deixando a natureza humana e sua história ao nível em que naturalmente se encontram. Ele assumiu a natureza e a história a um sumo, a um alto nível, de sorte que os Santos Padres proclamaram: Deus se fez homem para, dos homens, fazer deuses! Hoje, se acrescentaria: Deus se fez história e “eis que tudo se fez novo!” (2Cor 5,17). Numa palavra, tanto o homem, quanto a história foram elevados ao nível sobrenatural. Entretanto, o sobrenatural leva, hoje, a suspeita de “espiritualismo”, de “intimismo”, responsável pelo desconhecimento e fuga do humano e do histórico. Que dizer, então? Mostrei que, de forma alguma, o sobrenatural significa desconhecimento do humano, e do histórico. Ao contrário, o humano e o histórico foram elevados, as-sumidos a um sumo grau e, nesse sumo, devem ser considerados, se quisermos levar em conta os dados reais da teologia, da espiritualidade e da pastoral.

      Vou falar, agora, de um quarto componente da crise da Igreja, hoje. Consiste, no meu entender, em terem os intelectuais católicos, levados por preconceitos, rejeitado os parâmetros que poderiam expressar adequadamente os dados de nossa fé. Exemplifico. A maior parte das críticas feitas por católicos contra a encíclica Fides et Ratio giraram em torno do fato da encíclica não ter levado suficientemente em conta as filosofias modernas.

À base dessa crítica há um grave preconceito que, por sua vez é reforçado pelo medo de não ser suficientemente moderno, medo de enfrentar a moda, a “globalização do pensamento”. A globalização, com efeito, tomou conta também da área da cultura filosófica. Difícil ter coragem de pensar diferentemente das filosofias modernas. A Fides et ratio fala exatamente dessa coragem que os professores de filosofia necessitam (nº 106). Se observarmos a literatura filosófica, os congressos, ou simpósios, todos giram em torno da “filosofia moderna”. Entretanto, pretende-se ser “moderno” e segue-se uma filosofia que já tem quase quatro séculos, desde que Descartes, morto em 1650, lhe deu um primeiro grande impulso.

Onde reside, então, o preconceito? Melhor será exemplificar. José Comblin, em seu livro O povo de Deus, publicado pela Paulus, em 2002, faz uma confusão que bem reflete o preconceito dominante. A partir da página 292 coloca no mesmo saco Platão e Aristóteles, para dizer que, “não importando a diferença entre os dois”, ambos são conceitualistas, cultores da “verdade” abstrata. E a “escolástica, tendo usado a filosofia grega”, tornou-se culpada de ter transformado o cristianismo numa pura doutrina “condenatória das heresias” e “promotora da inquisição”. Dessa forma, a Igreja passou a se reger sob o império da “verdade” abstrata e do “princípio de não contradição que não aceita composição”. Assim que, “João Paulo II pediu perdão pela condenação de Galileu, façanha da escolástica, mas não parece estar muito impressionado com as armadilhas da teologia da ‘verdade’, no sentido escolástico, da qual procedeu a condenação de Galileu” (p.294). Eis, nesse exemplo, o preconceito. Primeiro, não querer levar em conta “a diferença” entre Platão e Aristóteles. Segundo, não tomar conhecimento o quanto Tomás de Aquino ultrapassa Aristóteles, como tentei mostrar em meus livros.

Terceiro, desconhecer o sentido do princípio de não contradição. Quarto, não distinguir as diversas escolásticas. Coloca todas no mesmo saco, para poder condená-las em bloco. Não se dá conta da diferença entre Tomás de Aquino, o maior representante da escolástica clássica, e as escolásticas do início da idade moderna, bem como as dos manuais de filosofia e teologia com que se “enroupavam” os conceitos e se ensinava nos seminários, até pouco tempo.

Qual o resultado final desse exemplo, entre muitos outros? O resultado final foi que, rejeitada a roupagem dos manuais, rejeitou-se também o conteúdo da metafísica, confundindo-a com “a ciência das essências”, das “verdades absolutistas e condenatórias”, adotando-se, com isso, comodamente, o pensamento globalizado das ciências exatas, entre elas a sociologia, para fundamentar a teologia.

Com tal método, entretanto, é impossível fazer teologia realista. Por dois motivos: primeiro, porque o método das ciências exatas trabalha com relações matemáticas de medidas e pesos, com o puro sensível quantitativo, enquanto que a teologia tem a ver com o mistério, que não é sensível quantitativo. Segundo, porque, negada a metafísica, como fez Emanuel Kant e, com ele, toda a filosofia moderna, negou-se também a possibilidade de alcançarmos dimensões da realidade que ultrapassem o sensível quantitativo, e afirmou-se, apenas, a existência de idéias vazias de conteúdo real.

      Qual as conseqüências? A maior delas é que a própria teologia, exatamente contra as intenções dos teólogos que rejeitam a metafísica “essencialista”, tornou-se a ciência das idéias teológicas, portanto, “essencialista”, e esqueceu as realidades teológicas. Tornou-se, assim, incapaz de ver e expressar, as realidades do mistério da Igreja, do mistério da divindade de Jesus, do mistério da graça batismal, do mistério da realidade da Eucaristia. A Igreja é vista apenas como uma instituição social, a reflexão sobre Jesus se esgota na consideração do homem perfeito, o batismo se reduz à inclusão da criança na comunidade eclesial e a Eucaristia não passa de uma celebração da fraternidade.

Faltam aí, como disse, os parâmetros para dizer algo mais, desde que os mesmos foram rejeitados. Sobre eles tratei bastante em “Subsídios para a arché da teologia”. Considero, portanto, essa carência como uma das maiores causas da crise da Igreja, criada, sobretudo, pelas teologias, tornadas historicamente incapazes de evidenciar para a pastoral e para a espiritualidade realidades essenciais à vida cristã.

Pe. Achylle Alexio Rubin
achylle@terra.com.br