Noção de bioética
Etimologicamente, a palavra Bioética vem do grego e significa: bios (vida) + ethike: (ética), ou seja, “ética da vida”. Quer-se uma justa compreensão, uma harmonia entre vida e ética. Bioética, portanto, pode ser definida como o estudo sistemático do comportamento humano na área das ciências da vida e do cuidado da saúde, enquanto que tal comportamento é analisado à luz dos valores e dos princípios morais. A referência central é o ser humano considerado desde a concepção até a morte.
Por que bioética?
Nas últimas duas décadas, os problemas éticos da medicina e das ciências da vida explodiram em nossa sociedade com grande intensidade. Constitui um desafio para a ética contemporânea providenciar um padrão moral comum para a solução das controvérsias provenientes das ciências biomédicas e das altas tecnologias aplicadas à vida e saúde. Como afirma o Papa Francisco: “Quando a técnica ignora os grandes princípios éticos, acaba por considerar legítima qualquer prática (..) A técnica separada da ética dificilmente será capaz de autolimitar o seu poder”.1
Características da bioética
São vários os fatores que caracterizam a origem da bioética. Citamos alguns:
1- Os avanços científico-tecnológicos: os rápidos progressos das ciências biológicas e médicas tais como temas relacionados com o início da vida humana (aborto, aborto de anencéfalos, pesquisas com embrião humano, células tronco embrionárias, clonagem, pílula do dia seguinte etc.); os progressos técnicos em assuntos que envolvem o morrer (eutanásia, distanásia, ortotanásia, cuidados paliativos etc.); pena de morte, violência, transplante de órgãos, técnicas de reprodução humana, engenharia genética aplicada à biologia humana, transgênicos, ecologia etc.
2- Mudanças no conceito de saúde e na prática médica: saúde – não só bem-estar físico, mas, sobretudo, qualidade de vida e realização integral; é um conceito abrangente, inclui alimentação, higiene, planejamento familiar, meio ambiente, saneamento básico etc. A vida é vista dentro de um ecossistema. Prática médica.
3- A necessidade de uma bioética interdisciplinar, ou seja, em diálogo com as diversas ciências, não só baseada na religião. A bioética deve basear-se na racionalidade humana, leiga e praticada por todos. Fundamentar em princípios morais tudo que está relacionado com a vida. Considerar os valores permanentes baseados em princípios metafísicos e na moral religiosa cristã como fatores constitutivos dos princípios éticos.
Bioética e Magistério Católico
Estamos vivenciando um momento intenso de reflexão sobre temas referentes à vida humana. Os avanços das ciências da vida suscitam debates éticos. Os vários setores do poder público, judiciário, religioso, científico e privado estão mobilizados neste debate. Dentro desse cenário de enorme avanço no campo das ciências da vida, as questões que confrontam o cientificamente possível e o eticamente admissível serão cada vez mais frequentes.
A vida humana está em pauta. Quando começa? Quando é pessoa? O que a caracteriza? Qual é (ou deve ser) a visão moral de pessoa (ou sociedade)? Que tipo de pessoa devemos ser ou que tipo de sociedade devemos construir? O que deve ser feito em situações específicas? Como vivemos harmoniosamente? O que é qualidade de vida? Como deve ser respeitada em sua dignidade? O que é interessante é que estes temas estão sendo comentados em casas, nas escolas, Igrejas, na rua, entre amigos etc.
O debate público é de enorme relevância, pois a Igreja mesma entende a necessidade do esclarecimento sobre o respeito à dignidade da pessoa. A competência da comunidade de decidir sobre os rumos das ações, leis etc., referentes à vida não deve ficar só nas mãos dos cientistas e dos políticos. A humanidade inteira deve ter suas instâncias de participação.
Um dos setores mais envolvidos neste debate e que mais recebe críticas é a Igreja Católica. A Igreja é criticada por pessoas e setores da comunidade alegando dogmatismo, imposição, arbitrariedade, desrespeito pela liberdade, intenção de dominar o estado etc. Muitos afirmam que o estado é laico e, por isso, a Igreja não deve se “intrometer”.
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Numa perspectiva teológica
O Magistério católico apresenta alguns princípios fundamentais da bioética baseados no modelo personalista, ou seja, um conjunto de orientações de valor que ajudam para estabelecer os juízos éticos no campo da bioética. O princípio de procurar sempre o bem do sujeito, ou negativamente, não causar dano ao sujeito. Valor fundamental da vida, do homem e da mulher criados à imagem e semelhança de Deus.
O ser humano, como evocou a instrução Donum vitae e como reconfirmou a Encíclica Evangelium vitae, “deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa e, primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser inocente à vida”.2 O embrião humano, desde a concepção, tem direitos fundamentais, ou seja, é titular de elementos constitutivos indispensáveis para que a atividade conatural a um ser possa desenvolver-se em conformidade com um princípio vital que lhe é próprio. O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção.
Como afirma o Papa Bento XVI: “O amor de Deus não faz diferença entre o neoconcebido, ainda no seio de sua mãe, e a criança, o jovem, o homem maduro ou o idoso. Não faz diferença, porque em cada um deles vê a marca da própria imagem e semelhança (cf. Gn 1,26). Não faz diferença, porque em todos distingue o rosto refletido de seu Filho Unigênito, no qual “nos escolheu antes da constituição do mundo nos predestinou para ser seus filhos adotivos por sua livre vontade” (Ef 1,4-5)”.3 Esses traços conferem ao ser humano uma dignidade própria que vem da sua natureza de origem divina.
Para a bioética católica, o valor da vida humana não deriva do que uma pessoa faz ou exprime, mas de sua própria existência como ser humano. Diante de todo o debate bioético e jurídico acerca do ser humano, somos chamados a descobrir o que nele é mais misterioso em sua dimensão ontológica e fundamentar todo um princípio de respeito à dignidade da pessoa em sua totalidade de corpo e alma.
Com tudo isso, afirmamos que o critério da eticidade na relação com a vida humana se encontra na pessoa mesma e é dado do cuidado ao bem humano autêntico e da salvaguarda dos valores humanos essenciais, ou seja, o que é humanamente digno.
Quando o homem não compreende mais o valor da dignidade intrínseca da pessoa humana pode incorrer, como consequência, na gravidade das diferentes formas de atentados contra vida humana, ou seja, a vida torna-se simplesmente uma coisa, que ele reivindica como sua exclusiva propriedade, que pode plenamente destruir, dominar e manipular.
E “quando se refere ao plano biológico, a Bíblia previne o ser humano de qualquer tentação de arrogar-se um poder sobre a vida, seja a própria, seja a dos outros”.4
Conforme a encíclica Evangelium vitae, “o domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de ‘usar e abusar’, ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente com a proibição de ‘comer o fruto da árvore’ (cf. Gn 2,16-17), mostra com suficiente clareza que, nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos às leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas”.5 O sentido último do respeito à pessoa tem origem transcendente, ou seja, provém de uma fonte que não pertence à ordem temporal e espacial.
Em uma sociedade como a nossa, em que estamos comprometidos com a igualdade humana e seus direitos, não podemos deixar de nos preocupar em defender a dignidade humana e não podemos desviar nosso olhar de nossos compromissos de pessoas com capacidades racionais. Em qualquer sociedade, mas certamente em uma com nossa história, temos de pensar cuidadosamente a respeito de que tipo de criatura mais alta entre os animais, porque é racional e vive em comunhão com Deus, o ser humano é, e como viver melhor de forma condizente com tal condição.
A vida é um bem confiado por Deus ao homem e que requer responsabilidade no agir em relação à própria vida e à vida de outros. O critério de liceidade das ações sobre a pessoa é oriundo do cuidado e da responsabilidade ao bem humano, que é o bem integral da pessoa considerada como totalidade, em todas as suas dimensões e em todas as suas relações. Os seres humanos são mais do que apenas seres naturais, eles desejam ser vistos, em seu particular, distintos, significativos e respeitados.
A dignidade do ser humano, enraizada na dignidade da própria vida, completa-se e fica mais alta quando nos abrimos à intimidade do Criador; funciona como um espaço reservado para uma antropologia mais rica, mais desenvolvida da natureza humana e de sua ação. A dignidade não é um conceito inútil, ela deve ser entendida a partir da antropologia teológica que encara o ser humano na ordem histórica real, na ordem da natureza humana, da revelação e da salvação em Jesus Cristo, e se torna essencial na compreensão da pessoa e no respeito a sua dignidade desde a concepção até a morte. Nisso consiste a função da bioética fundamentada em princípios cristãos.
1. FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si. Sobre o cuidado da Casa Comum. São Paulo: Paulinas, 2015, n.136.
2. Cf JOÃO PAULO II, Carta encíclica Evangelium vitae: sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana, Paulinas, São Paulo 1995, n.60.
3. BENTO XVI, Discurso aos participantes na XII Assembleia Geral da Pontifícia Academia para a Vida, por ocasião do Congresso internacional sobre: “O embrião humano na fase do pré-implante”, 27 de Fevereiro de 2006.
4. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, Bíblia e moral: Raízes bíblicas do agir cristão, Paulinas, São Paulo 2008, n. 98,2.
5. JOÃO PAULO II, Carta encíclica Evangelium vitae: sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana, Paulinas, São Paulo 1995, n.42.