Uma experiência autêntica da fé
A fé é fonte que faz brotar motivações com força para promover mudanças profundas no coração humano e no tecido social. Uma experiência autêntica da fé, na mais singela simplicidade, transforma a vida, modifica objetivos pessoais, qualificando as relações entre seres humanos e com o meio ambiente. Qualificar o modo como as relações humanas se entrelaçam é uma demanda gritante, uma vez que se constata a preocupante deterioração desses relacionamentos, com claros reflexos que se expressam no recrudescimento de violências em diferentes substratos da sociedade. Essa deterioração tem um contraponto na experiência autêntica da fé.

Créditos: Imagem gerada por Inteligência Artificial / Chat GPT
Quando se professa que Deus vendo a sua obra, considerou-a muito boa, fica explicitado o remédio que cura disputas e posses gananciosas dos bens da terra, ao se reconhecer, como sublinham os ensinamentos bíblicos, já desde o Antigo Testamento, que tudo pertence a Deus criador, proibindo-se vender qualquer terra porque tudo é d’Ele. Esse entendimento fomenta a compreensão saudável e real de que os seres humanos são apenas estrangeiros e hóspedes d’Aquele que é o dono único e absoluto de tudo. Trata-se de uma concepção antropológica, expressa com uma simplicidade que pode levar racionalidades a considerá-la superficial, ou mesmo irreal, não permitindo as necessárias correções nos desvios incrustrados no entendimento do que é o poder.
O clamor da fé e da ética
Compreende-se, pois, que a natureza não pode ser tratada como instrumento para alimentar ambições. O Papa Francisco, na Exortação Apostólica Laudate Deum, indica que é preciso lucidez e honestidade para reconhecer, em tempo, que o poder e o progresso gerados estão se voltando contra o próprio ser humano, criando situações degradantes. Então, o Papa fala de um aguilhão ético para explicitar a decadência do poder real, disfarçada pelo marketing e pela informação falsa ou manipulada, mecanismos úteis nas mãos de quem tem maiores recursos para influenciar a opinião pública.
Há conhecimento de denúncias sobre a utilização desses mecanismos para convencer habitantes de regiões com fortes impactos ambientais, acerca das vantagens e oportunidades econômicas e ocupacionais, obscurecendo a visão transparente das suas consequências. Não se posicionam com transparência, escondem os efeitos devastadores destes projetos que geram desolações, lugares inóspitos, sem sinais de esperança.
Ao apontar o efêmero entusiasmo pelo dinheiro recebido em troca de depredações e de situações irreversíveis de perdas, observa-se, obviamente, que a economia tem aí uma voz preponderante quando não demonstra preocupações sustentáveis no tratamento da casa comum. Rege-se simplesmente pela lógica do lucro, progressos e promessas ilusórias, envolvendo os pobres, como vítimas encantadas com migalhas que caem da mesa. Remete-se à fundamental interrogação sobre qual é o sentido da vida.
A lógica da economia tem força de sedução e domínio, contudo, a fé tem luz própria. Alimentada por motivações espirituais, possibilita evidências de parâmetros éticos por meio de valores e princípios inegociáveis. Nesta experiência, brota-se e cultiva-se uma sabedoria relevante com força de capacitar a ação humana, conforme parâmetros éticos e com propriedade para vencer as lógicas sedutoras de conquista exacerbada de riquezas e bem-estar, em detrimento da natureza que vai sofrendo esgotamentos.
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A fé como luz
Essa atual realidade aponta a sempre urgente e oportuna necessidade de se repensar as formas que o ser humano exerce o poder, sob pena de fracassos humanitários. A mortal indiferença diante dos pobres da terra e do já em curso, esgotamento dos bens da criação, pode aumentar o poder de uma fatia menor da humanidade, na contramão do que se espera e é necessário como progresso. O entusiasmo pelo progresso, não raramente cega, obscurecendo os seus devastadores efeitos. Esse fenômeno se dá no âmbito tecnológico, bem como no tratamento predatório e perversamente extrativista do meio ambiente. Torna-se a fé, como a professada no horizonte rico e sempre atual do cristianismo, a luz que revela a riqueza e as interpelações envolvendo valores e princípios inegociáveis.
A fé, à luz da presença e da Palavra de Deus, é referência que guarda dinâmicas e mecanismos éticos com propriedades para despertar o sentido de limites, de controles e do respeito, apartado das exigências mesquinhas de se ganhar mais, infinitamente mais, às custas de prejuízos que desequilibram a organização social, ignorando o compromisso de consideração pela inteireza da inviolável dignidade de toda pessoa humana. Os bens da criação devem ser administrados, igualmente, para o bem e pelo bem de todos. A perda deste sentido é o risco terrível de se alimentar um desarvorado instinto de exploração desenfreada, sustentando ambições insaciáveis e perversas, que ratifica a crescente brecha entre ricos, cada vez mais ricos, e pobres, cada vez mais pobres.
Conversão e comunhão
Um horizonte de conversão que transforma caminhos e atitudes é iluminado pela fé, convencendo da necessidade urgente de se caminhar em comunhão, com responsabilidade, zelando de modo comprometido pelos bens da criação e pelo bem igual de todo ser humano, defendendo-o como centralidade, sem desrespeitar e depredar as outras criaturas. Um aguilhão ético que incomoda e precisa ser enfrentado pela luz de algo maior, apontando o mistério da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus como o átrio, onde todos precisam se encontrar e ser interpelados, especialmente pela celebração da Semana Santa, um banho de conversão e compromisso ético.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte