Você já se sentiu preso a uma dor do passado? Uma experiência que, não importa o tempo que passe, continua a influenciar suas emoções e reações? Isso pode ser um trauma psicológico. Longe de ser apenas uma “lembrança ruim”, o trauma é uma ferida real que deixa marcas neurológicas.
O que é trauma? Uma ferida além do emocional
A palavra “trauma” vem do grego e significa, literalmente, “ferida”. Quando vivenciamos um evento avassalador – seja um acidente, uma perda, um abuso ou uma humilhação profunda, uma ferida é aberta não apenas em nossas emoções, mas também em nosso cérebro.
Essa ferida faz com que a memória do evento seja armazenada de forma disfuncional. Em vez de ser arquivada como uma lembrança do passado, ela permanece “viva”, pronta para ser reativada a qualquer momento, gerando dor e sofrimento contínuos.
Como o trauma altera o cérebro?
A neurociência nos mostra, através de exames de imagem como a ressonância magnética, o impacto físico do trauma:
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Hiperativação emocional: Áreas do cérebro ligadas às emoções e ao alerta (como a amígdala) ficam em estado de “alerta máximo”. É por isso que pessoas traumatizadas podem ter reações de medo e ansiedade desproporcionais a situações cotidianas.
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Desativação racional: Ao mesmo tempo, o córtex pré-frontal, responsável pelo pensamento lógico, planejamento e controle de impulsos, tem sua atividade diminuída.
O resultado? O cérebro fica “burro” emocionalmente. Você sente mais do que pensa. A reação emocional se sobrepõe à capacidade de raciocinar com clareza, mantendo você refém do ciclo do trauma.
EMDR: A descoberta que revolucionou o tratamento do trauma
Diante desse cenário, como podemos curar essa ferida? Uma das abordagens mais eficazes e reconhecidas mundialmente, inclusive pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é o EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing) ou Dessensibilização e Reprocessamento por Meio dos Movimentos Oculares.
A Origem do EMDR: A caminhada de Francine Shapiro
A técnica foi descoberta por acaso pela psicóloga Francine Shapiro. Ao caminhar por um parque enquanto pensava em algo perturbador, ela percebeu que seus olhos se moviam rapidamente de um lado para o outro e que, ao final, o sofrimento havia diminuído.
Intrigada, ela pesquisou e desenvolveu um protocolo terapêutico baseado em estímulos bilaterais (visuais, auditivos ou táteis) que ajudam o cérebro a “digerir” e reprocessar as memórias traumáticas, movendo-as do centro emocional para o córtex, onde podem ser arquivadas corretamente como passado.
Como o EMDR funciona na prática?
Durante a terapia de EMDR, o cérebro volta a funcionar de forma integrada. As imagens a seguir, baseadas em scans cerebrais, ilustram esse processo:
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Antes da Terapia: O cérebro mostra intensa atividade nas áreas emocionais (em vermelho) ao lembrar do trauma.
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Durante a Terapia: Com o estímulo bilateral, a ativação excessiva começa a diminuir.
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Após a Terapia: O cérebro volta a um estado de normalidade. A pessoa consegue lembrar do evento sem a carga emocional avassaladora, entendendo a verdade dos fatos.
O impacto do trauma no dia a dia
O trauma se manifesta de várias formas, muitas vezes sutis. Por exemplo, uma pessoa que sobreviveu aos campos de concentração pode sentir o coração acelerar ao ver a fumaça de uma padaria, pois seu cérebro associa o cheiro e a imagem à dor dos crematórios. Após a terapia, ele consegue entender que a fumaça agora cheira a pão, não a morte.
Outro exemplo pode ser de um menino aventureiro que escala pedras, ao ser recebido pelo pai com gritos de “Que porco! Você não tem jeito mesmo!”, pode internalizar essa mensagem. A cena cria uma ferida que o faz acreditar: “Eu faço tudo errado”. Esse trauma pode levar a dificuldades em relacionamentos, baixa autoestima e autossabotagem na vida adulta.
O caminho da cura, reconstruindo memórias e emoções
Um dos efeitos mais cruéis do trauma é que ele bloqueia o acesso às memórias positivas, fazendo com que o cérebro fique focado no negativo e tornando difícil lembrar de momentos felizes associados a uma pessoa ou situação traumática. A verdadeira cura acontece quando o cérebro, através da terapia, consegue finalmente reprocessar essa dor, permitindo que sentimentos como raiva e tristeza sejam sentidos e validados em um ambiente seguro.
À medida que essa ferida é tratada, o cérebro recupera a capacidade de acessar todas as memórias, e aquelas positivas, antes bloqueadas, voltam a surgir. É o momento em que um filho, que sentia apenas ódio pelo pai ausente, pode começar a se lembrar também dos momentos de proteção e carinho que existiram.
Essa compreensão completa da situação, que abrange tanto as luzes quanto as sombras, é o que permite o surgimento da compaixão e, eventualmente, do perdão — não como uma obrigação, mas como uma consequência natural da cura.
Você no comando, a escolha de sair de “Auschwitz”
Muitos sobreviventes de campos de concentração, mesmo após a libertação, continuavam a perambular em volta dos portões. O trauma era tão profundo, que o cérebro não conseguia ver uma saída, um futuro. A neurorrede isolada do trauma os mantinha presos àquele universo de dor.
A cura do trauma é também uma escolha. É a decisão de não querer mais “perambular em volta de Auschwitz”. É escolher a liberdade, mesmo que o caminho exija coragem para enfrentar a dor.
A escolha final é sempre sua. Você pode permanecer na prisão do passado ou pode buscar as ferramentas para se libertar e viver uma vida plena e integrada.