Hoje resolvemos interromper nossa série de artigos sobre a Doutrina Social da Igreja em virtude de um acontecimento de especial importância, sobre o qual não poderíamos passar em silêncio: o início da Quaresma. Quaresma é o período dos quarenta dias de penitência que precedem a festa da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Mas, como quarenta dias se, contando, medeiam quarenta e seis dias entre a Quarta-feira de Cinzas e a Páscoa? Simplesmente porque os domingos não podem ser dias de penitência, de modo que são excluídos da contagem. Pois cada domingo é uma pequena Páscoa, “dia em que por tradição apostólica se celebra o mistério pascal” (cânon 1.246 do Código de Direito Canônico), devendo ser evitada qualquer atitude que exprima tristeza. Assim, descontados os domingos, entre a Quarta-feira de Cinzas e a Páscoa da Ressurreição medeiam quarenta dias.
Segundo São Roberto Belarmino e Cornélio a Lápide, foram os próprios Apóstolos que instituíram a Quaresma, para nos prepararmos dignamente a fim de celebrar a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, a máxima festa do Cristianismo. Os quarenta dias da observância quaresmal são carregados de simbolismo. Quarenta dias e quarenta noites Nosso Senhor passou em rigoroso jejum no deserto (cf. Mt 4,1-2; Mc 1,12-13; Lc 4,1-2). Também quarenta anos o povo de Israel errou pelo deserto, antes de entrar na Terra Prometida (cf. Dt 8,2). Quarenta é o número das virtudes cardeais (quatro: castidade, paciência, justiça e prudência) e dos Evangelistas, multiplicado pelo número dos Dez Mandamentos. A Quaresma é, finalmente, um grande símbolo de nossa vida terrena que, no fim das contas, não passa de uma preparação para a nossa própria páscoa – «Memento, homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris» (Gn 3,19): Lembra-te, homem, que és pó, e em pó te hás de tornar.
Assim, a Quaresma é um tempo forte da prática penitencial da Igreja. Conforme ensina o Catecismo da Igreja Católica (CIC), «esses tempos são particularmente apropriados aos exercícios espirituais, às liturgias penitenciais, às peregrinações em sinal de penitência, às privações voluntárias como o jejum e à esmola, à partilha fraterna (obras de caridade e missionárias)» (CIC, número 1.438). É um tempo de renascimento espiritual e de renovação na fé, em que se pede aos fiéis maior interesse pelas coisas divinas, uma frequência mais assídua à Santa Missa e aos ofícios litúrgicos, maior correção nas próprias ações e como que um treinamento no controle de suas próprias paixões e sentimentos.
Lamentavelmente, hoje em dia a palavra “penitência” provoca mal-estar em muita gente. Entretanto, se consultarmos os Evangelhos, veremos que Jesus começou a Sua pregação nos exortando à penitência: «Poenitentiam agite: appropinquavit enim Regnum caelorum» (Mt 4,17) – “Fazei penitência, porque está próximo o Reino dos céus”. Rejeitar a penitência é rejeitar a pregação de Cristo desde o princípio.
A palavra “penitência” significa simultaneamente duas coisas que, embora distintas, estão indissociavelmente ligadas: uma virtude e um sacramento, a virtude da penitência e o sacramento da penitência. Sobre o sacramento da penitência e reconciliação, falaremos em outra oportunidade, se assim Deus o quiser. Pretendemos hoje dizer algumas palavras sobre a penitência como virtude, ilustrando o significado do tempo quaresmal.
Quando hoje se fala de penitência, as pessoas logo imaginam práticas exteriores ou pior: coisas como autoflagelação, numa visão totalmente distorcida. Na verdade, a essência da penitência é interior e não se confunde com práticas exteriores como o jejum, a esmola e a mortificação. As práticas exteriores pouco ou nada valem sem a penitência interior. «Rasgai os vossos corações e não os vossos vestidos, convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque Ele é benigno e compassivo» (Jl 2,13). Tampouco a virtude da penitência pode ser confundida com um desejo mórbido de infligir sofrimento a si mesmo.
A virtude da penitência é uma disposição moral que inclina o pecador a destruir e reparar os seus próprios pecados, por constituírem ofensa a Deus. A penitência é uma dor, mas uma dor espiritual, interior: é o sofrimento por haver pecado. É um querer não ter pecado, é um querer não ter querido o mal que se quis no passado. O pecado é um ato da vontade humana e só pode ser destruído por um novo ato da vontade que o revogue. É por isso que o ato da virtude da penitência está indissociavelmente ligado ao sacramento de mesmo nome: a validade deste depende da sinceridade daquele.
Mas não basta o arrependimento; a virtude da penitência exige também o propósito de reparar o mal cometido e de não mais tornar a pecar no futuro. Assim, a penitência se projeta nos sentidos do tempo: para o passado, o arrependimento; para o presente, a reparação; e, para o futuro, o propósito de emenda. Os hereges protestantes pregam que não é necessário aos que se arrependem reparar o mal que fizeram no passado de sua vida. O fulano mata, rouba, estupra e acha que basta “aceitar Jesus” para ficar com a “ficha limpa”. Por isso os protestantes escarnecem da necessidade de penitência. Ora, isso é uma distorção do Evangelho, pois é preciso reparar: quem roubava, deve restituir o que roubou; quem professava publicamente uma falsa doutrina, deve também se retratar em público.
Tenhamos todos, então, uma boa e santa Quaresma. «Desde então começou Jesus a pregar e a dizer: “Fazei penitência, porque está próximo o Reino dos céus”» (Mt 4,17). E se está próximo, é porque não está distante: «O Senhor está perto de toda pessoa que o invoca» (Sl 144,18).