📖 História

São Jerônimo e a tradução bíblica: um marco do alto nível cultural cristão

Entre letras e escrituras sagradas

Jerônimo de Estridão e João de Antioquia, também alcunhado de Crisóstomo, isto é, “boca de ouro”, pelas suas qualidades oratórias, representam ambos, de maneira singular, o alto nível cultural alcançado pelo cristianismo e, de modo notadamente intenso, expressam os eventos do seu tempo: ambos abastecidos de uma refinada cultura clássica, de uma sutil técnica literária (latina, no caso de Jerônimo; grega, no caso de João); ambos dedicados ao estudo e à interpretação das Sagradas Escrituras, tendo por base o método histórico; ambos testemunhas e “jornalistas” da própria época (Jerônimo, através das cartas; João, por meio de discursos).

Foto ilustrativa: benoitb by Getty Images

Jerônimo, nascido em Estridão, na Dalmácia, por volta de 347 d.C., formou-se cultural e espiritualmente em Roma, de 359 a 367 d.C. Em 365, aproximadamente, recebeu o batismo das mãos do Papa Libério. Depois de algumas viagens à Gália e à Síria, onde aprendeu o hebraico e aprofundou o grego, viveu um triênio como anacoreta e recebeu a ordenação sacerdotal, em 379 d.C., em Antioquia.

Ele se fixou em Constantinopla, onde manteve contato com Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa e com o origenismo, crença que seria depois anatemizada, do bispo João II de Jerusalém e de seu antigo amigo Rufino.

O legado de Jerônimo sob o Papa Dâmaso

Convidado para ir a Roma pelo Papa Dâmaso (1 de outubro de 366 a 11 de dezembro de 384 d.C.), sucessor do Papa Libério, nessa sua primeira estada, São Jerônimo colocou-se a serviço da Cúria, como secretário pessoal do Pontífice, que lhe confiou a revisão da tradução latina da Sagrada Escritura então chamada Itala ou Vetus Latina.

Ao mesmo tempo, São Jerônimo se dedicou à propaganda e à prática do ideal monástico vivido no Oriente – já em 367 d.C., tinha escrito a biografia de um predecessor de Antônio, o Egípcio, A vida de São Paulo de Tebas –, tornando-se o diretor espiritual de um grupo de matronas romanas que se recolheram num palácio de Aventino.

A segunda estada de São Jerônimo em Roma foi de 382 a 385 d.C., quando iniciou a redação de suas Cartas, um epistolário que cobriria todo o arco da sua vida restante e no qual se encontram os seus traços mais pessoais e sugestivos.

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Falecido o Papa Dâmaso, São Jerônimo, que já tinha sido alvo de críticas tidas como infundadas, decidiu deixar Roma para se estabelecer, em definitivo, na Palestina e dedicar-se totalmente aos estudos bíblicos, tendo já escrito as obras Revisão do Novo Testamento e do saltério (de 382 a 384 d.C.), Disputa entre um luciferiano e um ortodoxo (382 d.C., aproximadamente), sobre a Igreja, a hierarquia e os sacramentos, e uma pequena obra, Contra Elvídio (383 d.C.), com a qual defendia a virgindade cristã, contra as reservas e as insinuações de um leigo, discípulo do bispo ariano Auxêncio.

Ao fixar residência na Palestina, em Belém, próximo de um convento das matronas romanas Marcela, Paula, Eustóquia, entre as quais pregava a santidade, São Jerônimo iniciou uma segunda empreitada bíblica, vale dizer, a “[…] Revisão do Antigo Testamento, tendo como base a tradução grega dos Setenta […]” (Pierini, 2004, p. 183).

Além disso, ele começou uma série de comentários a cada um dos livros da Bíblia, entre os quais destacam-se o Comentário a quatro cartas de Paulo (Gálatas, Efésios Tito, Filipenses), em 386-387 d.C., e Questões hebraicas sobre o Gênesis, redigido por volta de 389 d.C.

A grande obra bíblica de São Jerônimo

Entretanto, foi em 391 d.C., aproximadamente, que São Jerônimo amadureceu sua terceira e mais importante empreitada bíblica: a Tradução do Antigo Testamento dos textos originais (em duas etapas: de 391 a 395 d.C. e de 398 a 405 d.C.), dedicando-se ainda a outras atividades literárias: a de historiador da vida monástica (a Vida de Malco de Cálcis, em 390 d.C., a Vida de Hilarião de Gaza, em 391) e dos escritores eclesiásticos (Os homens ilustres, em 393 d.C., primeiro manual de patrologia); a de comentador escriturístico (sobretudo os Comentários aos profetas, de 391 d.C. em diante); a de pregador (por exemplo, as Homilias proferidas em Belém, em 392-401 d.C.); a de polemista (nas cartas e, especialmente, em Contra Joviniano, em 393 d.C., sempre em defesa da vida monástica e do ascetismo cristão.

O fato é que os escritos principais de São Jerônimo são os seus numerosos comentários às Sagradas Escrituras e, ainda, a tradução da Bíblia em latim – do século XII em diante chamada de Vulgata – na primeira revisão da assim chamada Itala ou Vetus Latina, realizada por atribuição do Papa Damaso e, mais tarde, em Belém, também a tradução do Antigo Testamento do texto original (Bihlmeyer; Tuechle, 1960).

Não por outro motivo, tem-se esse significativo registro histórico a respeito de sua atividade intelectual e cultural:

Jerônimo é, antes de mais nada, um sábio, mas sua ciência volta-se para a ação. Deixando Roma depois da morte do Papa Dâmaso, seu amigo Jerônimo viveria trinta e cinco anos perto da gruta da Natividade, dedicando-se a um gigantesco e original trabalho de exegeta, tradutor (a Vulgata) e historiador: uma obra imensa e diversa, que ele marca com sua personalidade vigorosa e por vezes crítica (Pierrard, 1982, p. 47).

Vulgata , do latim editio vulgata , “versão comum”, Bíblia latina usada pela Igreja Católica Apostólica Romana, traduzida principalmente por São Jerônimo. De fato, em 382 d.C., o Papa Dâmaso tinha confiado a São Jerônimo o principal estudioso bíblico de sua época, de produzir uma versão latina aceitável da Bíblia, a partir das diversas traduções até então em uso. Sua tradução latina revisada do textos sagrados foi publicada por volta de 383 d.C.

Valendo-se da versão grega da Septuaginta do Antigo Testamento, ele produziu novas traduções latinas dos Salmos (o chamado Saltério Galicano), do Livro de Jó e de alguns outros livros. Mais tarde, ele decidiu que a Septuaginta era insatisfatória, e começou a traduzir todo o Antigo Testamento a partir das versões hebraicas originais, um processo que concluiu por volta de 405 d.C.

A tradução de São Jerônimo não foi aceita de imediato, porém, a partir de meados do século VI, uma Bíblia completa com todos os livros separados, encadernados em uma única capa, passou a ser comumente usada.

Em geral, ela continha a tradução do Antigo Testamento feita por São Jerônimo do hebraico, exceto os Salmos, seu Saltério Galicano, sua tradução dos livros de Tobias e Judite (apócrifos nos cânones judaico e protestante) e sua revisão dos Evangelhos. O restante do Novo Testamento foi extraído de versões latinas mais antigas, que também teriam sido revisadas por São Jerônimo.

O tradutor que se tornou Doutor da Igreja

Outros livros, de versões mais antigas, encontrados na Septuaginta – apócrifos para judeus e protestantes; deuterocanônicos para católicos, cujo significado é “pertencentes ao segundo cânone”, foram reconhecidos oficialmente pela Igreja como inspirados nos Concílios de Roma (382 d.C.), Hipona (393 d.C.), Cartago (397 d.C.) e Trento (1546), sendo eles Tobias, Judite, Primeiro Livro dos Macabeus, Segundo Livro dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, partes dos Livros de Daniel e de Ester (Varela; Varela, 2016).

Ao longo dos anos, vários editores e corretores produziram textos revisados da Vulgata. A Universidade de Paris produziu uma edição importante no século XIII. Seu objetivo principal era fornecer um padrão consensual para o ensino e o debate teológicos. As primeiras Bíblias Vulgata impressas foram todas baseadas nesta edição parisiense.

Em 1546, o Concílio de Trento decretou que a Vulgata era a autoridade latina exclusiva para a Bíblia, exigindo que ela fosse impressa com o menor número possível de falhas, na medida em que:

O Concílio de Trento tratou paralelamente da definição dos dogmas católicos e da reforma da Igreja. A IV sessão, em abril de 1546, foi de importância capital, pois definiu que as tradições apostólicas devem ser aceitas com o mesmo respeito que a Escritura, cujo cânone foi fixado; a Vulgata de São Jerônimo foi declarada autêntica, ou seja, suficiente para a demonstração dogmática (Pierrard,1982, p. 186).

A chamada Vulgata Clementina, promulgada pelo Papa Clemente VIII, em 1592, tornou-se o texto bíblico oficial da Igreja Católica Apostólica Romana. Várias edições críticas foram produzidas nos tempos modernos.

Estudo e tradução

Em 1965, o Concílio Vaticano II estabeleceu uma comissão para revisar a Vulgata e, em 1979, a Nova Vulgata, também conhecida como Neovulgata, foi publicada. Foi promulgada em abril daquele ano pelo Papa João Paulo II como o texto latino oficial da Igreja Católica Apostólica Romana. Uma segunda edição dela foi lançada em 1986.

Enfim, não é demais dizer que São Jerônimo, o “Doutro Bíblico”, é o segundo autor mais prolífico do cristianismo antigo tardio (depois de Santo Agostinho). Na Igreja Católica Apostólica Romana, ele é reconhecido como Santo Padroeiro dos tradutores, bibliotecários e enciclopedistas.

Sua maior contribuição foi a tradução da Bíblia do grego e do hebraico para o latim, uma tarefa exigente que tornou a Palavra de Deus bem mais acessível.

Devido à sua dedicação aos estudos bíblicos, a Igreja Católica Apostólica Romana o reconheceu como um Doutor da Igreja. Sua memória é celebrada no dia 30 de setembro, data em que também se comemora o Mês da Bíblia no Brasil.

Marcius Tadeu Maciel Nahur
Natural de Lorena (SP), Coordenador do Curso de Filosofia da Faculdade Canção Nova. Formado em Direito, História e Filosofia. Mestrado em Direito com ênfase na Filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Delegado de Polícia Aposentado.

Referências
BILHMEYER, Karl; TUECHLE, Hermann. Storia della Chiesa: l’antichità Cristiana.
Brescia: Morcelliana, 1960. 525 p.
PIERRARD, Pierre. História da Igreja. Tradução de Álvaro Cunha. São Paulo: Edições Paulinas, 1982. 298 p.
PIERINI, Franco. A Idade Antiga – Curso de História da Igreja -I. Tradução de José Maria de Almeida. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. 249 p.
VARELA, Alexandre; VARELA, Viviane. As grandes mentiras sobre a igreja católica: desvende os mitos sobre o catolicismo. São Paulo: Planeta, 2016. 223 p.