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Pecados capitais e as doenças espirituais

Aprofundando no assunto:

A respeito da expressão “doenças espirituais”, explica-nos Padre Paulo, em sua obra, encontramos, em outros livros, as mesmas doenças com o nome de “espíritos do mal”, “maus pensamentos” ou “pecados capitais”. Trata-se da mesma realidade, expressa com uma terminologia diversa. No Ocidente, a lista dos “oito espíritos do mal”, apresentada por Evágrio, foi divulgada por João Cassiano (±360–435), monge oriental que se transferiu para o Ocidente, fundando dois mosteiros em Marselha, na França. 

Retomada pelo Papa São Gregório Magno (540-604), essa lista deu origem aos sete pecados capitais de nossos catecismos. A diferença numérica, de oito para sete, deve-se ao fato de a soberba ocupar um lugar privilegiado. É assim que São Gregório recorda: “O princípio de todo pecado é a soberba” (Eclo 10,15).

Como vimos, essas oito doenças básicas ou genéricas são a origem de todas as outras. As três primeiras derivam diretamente da filáucia. Evágrio nos explica a relação das outras cinco.

Entre os demônios que se opõem à prática [das virtudes], os primeiros a fazerem guerra são os que se dedicam aos prazeres da gula (gastrimargía), os que insinuam em nós a avareza (filargyría) e os que nos estimulam a buscar a glória (dóxa) que vem dos homens. Todos os outros vêm depois destes e acolhem aqueles que foram por eles feridos. De fato, não é possível cair nas mãos do espírito da luxúria (pornéia) se ainda não se caiu por causa da gula. E não há quem seja perturbado pela ira (thymós) se não está lutando por causa de alimentos, riquezas ou desejos irracionais de glória. Não pode fugir do demônio da tristeza (lýpe) quem foi privado de todos estes bens ou quem não pôde obtê-los. Nem poderá fugir da soberba (hyperefanía), a primeira gerada pelo diabo, quem antes não tiver arrancado a raiz de todos os males que é o amor ao dinheiro (filargyría), se é verdade, como diz Salomão, que a pobreza faz o homem ser humilde. Em resumo, não é possível que o homem se envolva com um demônio se antes não foi ferido por aqueles três males principais. Por isto, foram estes três os pensamentos (logismói) que o diabo colocou diante do Salvador: primeiro pedindo que transformasse as pedras em pães; depois lhe prometendo todo o mundo se se prostrasse em adoração; e em terceiro lugar dizendo que, se o tivesse obedecido, teria sido glorificado se, caindo do pináculo do templo, não tivesse sofrido mal algum desta queda. Nosso Senhor, mostrando-se superior a tudo isto, mandou ao diabo que se retirasse e assim nos ensinou que não é possível repelir o diabo sem antes ter desprezados estes três pensamentos.

A filáucia faz com que busquemos a felicidade nas criaturas:

comida, dinheiro e fama (gula, avareza e vaidade). A busca da felicidade na comida pode se agravar na busca do sexo (luxúria). A busca da felicidade na fama pode se agravar no orgulho. É bem certo que, enquanto caminhamos neste mundo, teremos de lutar até o fim contra as solicitações da carne, do mundo e do demônio, temos a firme esperança de que chegaremos um dia, ajudados pela graça, à vitória definitiva e, coroados por Cristo, reinaremos com Ele, livres de uma vez para sempre de todo desejo impuro, de toda aspiração vaidosa, de toda rixa e inimizade. A filáucia é um amor desordenado da pessoa por si mesma. É um amor de si contra si. A pessoa se quer tão bem que se autodestrói.

Abaixo mencionaremos o que nos diz o Catecismo: 

1852. É grande a variedade dos pecados. A Sagrada Escritura fornece-nos várias listas. A Epístola aos Gálatas opõe as obras da carne aos frutos do Espírito:  «As obras da natureza decaída (“carne”) são claras: imoralidade, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, inimizades, discórdias, ciúmes, fúrias, rivalidades, dissensões, facciosismos, invejas, excessos de bebida e de comida e coisas semelhantes a estas. Sobre elas vos previno, como já vos tinha prevenido: os que praticam ações como estas, não herdarão o Reino de Deus» (Gl 5, 19-21) (93). 

1853. Os pecados podem distinguir-se segundo o seu objeto, como todo o ato humano; ou segundo as virtudes a que se opõem; por excesso ou por defeito; ou segundo os mandamentos que violam. Também podem agrupar-se segundo outros critérios: os que dizem respeito a Deus, ao próximo, à própria pessoa do pecador; pecados espirituais e carnais: ou, ainda, pecados por pensamentos, palavras, obras ou omissões. A raiz do pecado está no coração do homem, na sua vontade livre, conforme o ensinamento do Senhor: «do coração é que provêm pensamentos malévolos, assassínios, adultérios, fornicações, roubos, falsos testemunhos, maledicências – coisas que tornam o homem impuro» (Mt 15, 19). Mas é também no coração que reside a caridade, princípio das obras boas e puras, que o pecado ofende. 

A gravidade do pecado: pecado mortal e pecado venial 

1854. Os pecados devem ser julgados segundo a sua gravidade. A distinção entre pecado mortal e pecado venial, já perceptível na Escritura (94), impôs-se na Tradição da Igreja. A experiência dos homens corrobora-a.

1855. O pecado mortal destrói a caridade no coração do homem por uma infração grave à Lei de Deus. Desvia o homem de Deus, que é o seu último fim, a sua bem-aventurança, preferindo-Lhe um bem inferior. O pecado venial deixa subsistir a caridade, embora ofendendo-a e ferindo-a. 

1856. O pecado mortal, atacando em nós o princípio vital que é a caridade, torna necessária uma nova iniciativa da misericórdia de Deus e uma conversão do  coração que normalmente se realiza no quadro do sacramento da Reconciliação: 
«Quando […] a vontade se deixa atrair por uma coisa de si contrária à caridade,  pela qual somos ordenados para o nosso fim último, o pecado, pelo seu próprio  objeto, deve considerar-se mortal […], quer seja contra o amor de Deus (como a  blasfêmia, o perjúrio, etc.), quer contra o amor do próximo (como o homicídio, o  adultério, etc.) […] Em contrapartida, quando a vontade do pecador por vezes se  deixa levar para uma coisa que em si é desordenada, não sendo todavia contrária ao  amor de Deus e do próximo (como uma palavra ociosa, um risco supérfluo, etc.), tais  pecados são veniais» (95, Santo Tomás de Aquino). 

1857. Para que um pecado seja mortal, requerem-se, em simultâneo, três condições: «É pecado mortal o que tem por objeto uma matéria grave, e é cometido com plena consciência e de propósito deliberado» (96). 

1858. A matéria grave é precisada pelos dez Mandamentos, segundo a resposta que Jesus deu ao jovem rico: «Não mates, não cometas adultério, não furtes, não levantes falsos testemunhos, não cometas fraudes, honra pai e mãe» (Mc 10, 18). A gravidade dos pecados é maior ou menor: um homicídio é mais grave que um roubo.  A qualidade das pessoas lesadas também entra em linha de conta: a violência cometida contra pessoas de família é, por sua natureza, mais grave que a exercida contra estranhos. 

1859. Para que o pecado seja mortal tem de ser cometido com plena consciência e total consentimento. Pressupõe o conhecimento do caráter pecaminoso do ato, da sua oposição à Lei de Deus. E implica também um consentimento suficientemente deliberado para ser uma opção pessoal. A ignorância simulada e o endurecimento do coração (97) não diminuem, antes aumentam, o caráter voluntário do pecado. 

1860. A ignorância involuntária pode diminuir, ou mesmo desculpar, a imputabilidade duma falta grave. Mas parte-se do princípio de que ninguém ignora os princípios da lei moral, inscritos na consciência de todo o homem. Os impulsos da sensibilidade e as paixões podem também diminuir o caráter voluntário e livre da falta. O mesmo se diga de pressões externas e de perturbações patológicas. O pecado cometido por malícia, por escolha deliberada do mal, é o mais grave.

1861.
O pecado mortal é uma possibilidade radical da liberdade humana, tal como o próprio amor. Tem como consequência a perda da caridade e a privação da graça santificante, ou seja, do estado de graça. E se não for resgatado pelo arrependimento e pelo perdão de Deus, originará a exclusão do Reino de Cristo e a morte eterna no Inferno, uma vez que a nossa liberdade tem capacidade para fazer escolhas definitivas, irreversíveis. No entanto, embora nos seja possível julgar se um ato é, em si, uma falta grave, devemos confiar o juízo sobre as pessoas à justiça e à misericórdia de Deus. 

A proliferação do pecado 

1865. O pecado arrasta ao pecado; gera o vício, pela repetição dos mesmos atos. Daí resultam as inclinações perversas, que obscurecem a consciência e corrompem a apreciação concreta do bem e do mal. Assim, o pecado tende a reproduzir-se e reforçar-se, embora não possa destruir radicalmente o sentido moral. 

1866. Os vícios podem classificar-se segundo as virtudes a que se opõem, ou relacionando-os com os pecados capitais que a experiência cristã distinguiu, na  sequência de São João Cassiano (102) e São Gregório Magno (103). Chamam-se capitais, porque são geradores doutros pecados e doutros vícios. São eles: a soberba, a avareza, a inveja, a ira, a luxúria, a gula e a preguiça ou negligência (acédia). 

1867. A tradição catequética lembra também a existência de «pecados que bradam ao céu». Bradam ao céu: o sangue de Abel (104); o pecado dos sodomitas (105); o clamor do povo oprimido no Egito (106); o lamento do estrangeiro, da viúva e do órfão (107); a injustiça para com o assalariado (108). 

1868. O pecado é um ato pessoal. Mas, além disso, nós temos responsabilidade nos pecados cometidos por outros, quando neles cooperamos: 
– Tomando parte neles, direta e voluntariamente; – ordenando-os. aconselhando-os, aplaudindo-os ou aprovando-os; – não os denunciando ou não os impedindo, quando a isso obrigados; – protegendo os que praticam o mal. 

1869. Assim, o pecado torna os homens cúmplices uns dos outros, faz reinar entre eles a concupiscência, a violência e a injustiça. Os pecados provocam situações sociais e instituições contrárias à Bondade divina; as «estruturas de pecado» são expressão e efeito dos pecados pessoais e induzem as suas vítimas a que, por sua vez, cometam o mal. Constituem, em sentido analógico, um «pecado social» (109). 

Resumindo 

1870. «Deus encerrou todos na desobediência, para usar de misericórdia para com todos» (Rm 11, 32). 

1871. O pecado é «uma palavra, um ato ou um desejo contrário à lei eterna» (110). É uma ofensa a Deus. Levanta-se contra Deus por uma desobediência contrária à obediência de Cristo. 1872. O pecado é um ato contrário à razão. Fere a natureza do homem e atenta contra a solidariedade humana. 

1873. A raiz de todos os pecados está no coração do homem. As suas espécies e gravidade aferem-se, principalmente, pelo seu objeto. 

1874.
Optar deliberadamente – isto é, sabendo e querendo – por algo gravemente contrário à lei divina e ao fim último do homem, é cometer um pecado mortal. Este destrói em nós a caridade, sem a qual a bem-aventurança eterna é impossível; se não houver arrependimento, tem como consequência a morte eterna. 

1875. O pecado venial constitui uma desordem moral, reparável pela caridade que deixa subsistir em nós. 

1876. A repetição dos pecados, mesmo veniais, gera os vícios, entre os quais se distinguem os pecados capitais. 

Esperamos que este pequeno texto possa ter aguçado a sua curiosidade, a fim de acessar essas referências (livros) e poder ainda mais aprender com as riquezas da Igreja. 

Guilherme Razuk – seminarista na Comunidade Canção Nova

 

1AZEVEDO JÚNIOR, Paulo Ricardo de. Um olhar que cura: terapia das doenças espirituais. 11. ed. São Paulo: Canção Nova, 2010. 159 p. ISBN 978-85-7677-119-7.
2(São) João Cassiano nunca foi canonizado oficialmente, mas São Gregório Magno o considerava santo e é celebrado como tal nas Igrejas do Oriente e em Marselha.
3São Gregório Magno, Moralia in Iob, 31,45, § 87.
4Γενικώτατοι λογισµόι. O Ocidente costuma chamar estas doenças espirituais de “pecados capitais”. A expressão, no entanto, se presta a inúmeras confusões, por isto prefiro usar outra palavra análoga, “doença”, que parece ser mais clara para o homem moderno. Trata-se de uma realidade análoga ao “pecado”, pois conduz ao pecado e dele provém, mas não se trata de pecado no sentido estrito do termo. Os pecados capitais continuam agindo em nós, mesmo depois de termos nos confessado e de termos sido perdoados dos “verdadeiros” pecados. Por isto usa-se a palavra “capital” (do latim caput = cabeça) “porque geram outros pecados, outros vícios” (Catecismo da Igreja Católica, 1866).
5Pr 10,4, segundo a tradução da Septuaginta (πενία ἄνδρα πεινοῖ).
6Este texto se encontra na Filocalia com o nome “Sobre o Discernimento das Paixões e dos Pensamentos” (Edição italiana: La Filocalia. Milano: Piero Gribaudi Editore, vol. 1, 1983, p. 107), onde é atribuído a Evágrio. Por causa das perseguições antiorigenistas, o tratado chegou a nós como atribuído a São Nilo (PG 79). Outra tradução, com o texto grego original, está disponível em: Evagrio Pontico, Sui diversi pensieri della malvagità, n.1. Cinisello Balsano: Edizioni San Paolo, 1996, p. 69.