Natal: o sonho de Deus! Os textos bíblicos e litúrgicos do Natal são um antídoto precioso contra o esvaziamento que essa época do ano litúrgico corre constantemente o risco de sofrer. Isso ocorre devido à prevalência da lógica devocional e consumista com que nossa sociedade é levada a viver. Voltemos sempre à Bíblia e à Liturgia, e permitamos que elas nos narrem o que de fato celebramos neste período do Natal.
A genealogia
O evangelista Mateus, após a genealogia (Mt 1,1-17), que constitui como um prólogo para as narrativas da infância, continua sua narrativa com cinco episódios (a anunciação a José, os Magos, a fuga para o Egito, a matança das crianças, o retorno do Egito), todos marcados por uma citação de cumprimento (Mt 1,22; 2,5; 2,15; 2,17; 2,23). A citação do cumprimento/realização, uma característica de Mateus, enfatiza como tudo o que acontece está de acordo com a Palavra de Deus e Sua Promessa.
O primeiro episódio que encontramos no Evangelho de Mateus, referente às narrativas da infância, é a genealogia (Mt 1,1-17). No lecionário litúrgico, essa passagem é proclamada em sua totalidade no dia 17 de dezembro, no início das principais férias do Advento, e na Missa Vespertina na Vigília de Natal. A Liturgia, portanto, usa esse texto em situações de expectativa, para colocar o evento da Encarnação no contexto mais amplo da História da Salvação. Esse é um aspecto muito importante, que não deve ser esquecido, se quisermos que o Natal seja compreendido em sua dimensão mais autêntica.
A intervenção de Deus
A genealogia é dividida em três partes, cada uma das quais, de acordo com o que o evangelista afirma, consistindo em quatorze gerações. Na realidade, se formos contar quantas gerações cada uma das três partes contém, como veremos, que a afirmação de Mateus não é verdadeira. Por que, então, declarar que a genealogia do Messias consiste em três blocos de quatorze gerações cada? Que valor o número quatorze tem para Mateus?
Em hebraico, a soma do valor numérico das letras que compõem o nome “Davi” (dvd /4+6+4) é precisamente quatorze. O evangelista quer nos dizer que a promessa feita a Davi passa por toda uma história feita de momentos luminosos, mas também de grandes contradições e catástrofes. Basta pensar no momento trágico da deportação para a Babilônia ou na longa série de reis que não agiram de acordo com a Lei do Senhor. Tudo bem, mesmo quando a promessa de Deus parecia estar perdida e extinta nos ângulos distorcidos da história humana, ela realmente continuou em seu caminho invisível.
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A fidelidade de Deus nunca falha
Essa é uma grande proclamação de esperança: a fidelidade de Deus nunca falha, mesmo quando toda a esperança parece perdida aos nossos olhos. Uma longa série de substantivos introduzidos pelo verbo ativo “gerou” acaba sofrendo uma mudança abrupta. De repente, ele passa do ativo para o passivo: “Jacó gerou José, marido de Maria, da qual nasceu (digamos: foi gerado) Jesus, chamado Cristo” (Mt 1,16).
A história humana não poderia ter gerado o Messias por si só; somente a intervenção livre e gratuita de Deus permite que a história humana gere o que não foi esperado. Esse é o primeiro anúncio do Natal que a genealogia segundo Mateus nos apresenta: a fidelidade de Deus. Em Jesus, Deus confirma sua fidelidade ao seu povo e a toda a humanidade.
Um Deus conosco: Emanuel
Nesse texto, surge um tema fundamental de todo o relato de Mateus que cria uma inclusão entre o início e o fim do primeiro Evangelho: o Deus conosco. Uma das principais categorias bíblicas para entender a Encarnação e o Mistério de Jesus, de acordo com Mateus, consiste no fato de que n’Ele Deus se mostrou como o Emanuel, o “Deus conosco”. Esse anúncio no contexto da história do anúncio a José ocorre por meio do cumprimento da citação de Isaías: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, a quem chamará Emanuel” (Is 7,14). O tema “Deus conosco” retornará no final do Evangelho nas palavras do Ressuscitado aos seus discípulos: “Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28, 20).
Emanuel não é um conceito, mas uma história concreta de um povo que, em seus eventos conturbados, sempre sentiu a presença constante de seu Deus. Isso também é significativo para nós, que muitas vezes somos tentados a explicar Deus. Em vez disso, Mateus nos anuncia que a presença de Deus só pode ser narrada, contada, testemunhada. Uma presença que deve ser experimentada e depois narrada para ser comunicada. Jesus, o Emanuel, é precisamente aquele que nos conta a face de Deus não por meio de conceitos, mas por meio de sua vida, na qual Mateus, sua comunidade e nós experimentamos a presença de Deus.
A presença de Deus
Nesse sentido, podemos ver como a proclamação dessa página do Evangelho de Mateus não é simplesmente a narração de um evento passado – uma característica que diz respeito a todos os evangelhos da infância – mas uma proclamação sempre presente para a comunidade sobre seu relacionamento com Cristo, o Senhor, que continua sendo para ela a maneira permanente de experimentar a Presença de Deus. Nós, que lemos essas páginas do Evangelho de Mateus hoje, não ouvimos simplesmente um fato do passado, mas como Deus está “conosco” hoje. O passado (a história de Jesus) e o presente (a vida da comunidade) estão intimamente ligados.
A estrela e a Escritura
Os misteriosos protagonistas dessa narrativa são guiados ao encontro do Messias que nasceu a partir de dois elementos: a estrela e as sagradas Escrituras de Israel. Sua jornada começa graças a uma estrela que os guia (Mt 2,2.9). É um elemento da criação que os guia para um encontro com Deus. No entanto, esse elemento por si só não é suficiente, são as Escrituras de Israel (cf. Miq 5,1) que devem lhes mostrar o lugar do nascimento do Messias.
Esse texto acrescenta outro fundamento à maneira como vivenciamos o Natal hoje. Não é possível encontrar o Deus conosco sem ter as Escrituras em nossas mãos. Jesus é a própria Palavra de Deus se tornando nossa carne, e somente as Escrituras são o lugar onde essa Palavra pode chegar às nossas vidas, hoje, e armar sua tenda entre nós. É claro que também devemos nos permitir ser questionados e guiados pela natureza, pela vida humana, mas não podemos chegar a um encontro com a Palavra de Deus para nós sem as Escrituras.
A fuga para o Egito
No lecionário litúrgico, o relato da fuga para o Egito é proposto na Festa da Sagrada Família no ano A e em 28 de dezembro, juntamente com o episódio seguinte da matança dos inocentes.
Somos guiados para a compreensão desse texto pela citação de Os 11,1: “do Egito chamei meu filho”. A referência ao texto profético nos orienta a fazer uma ligação entre o episódio da fuga para o Egito e o evento do Êxodo. Afinal de contas, esse relato nos diz que Jesus teve que ser um salvador primeiro.
No texto de Oséias, Deus chama seu filho de povo; na passagem do Evangelho de Mateus, por outro lado, Jesus é mencionado: “Mateus considera que o relacionamento filial do povo de Deus está agora resumido em Jesus, que revive em sua própria vida a história desse povo” (R. E. Brown). Jesus, precisamente nessa qualidade de representante de todo o povo de Deus, deve refazer os caminhos que o povo percorreu na infidelidade, para pronunciar um “sim” divino nesses mesmos caminhos, para transformar “o deserto em fontes de água” (cf. Is 41,18). Outra face do Deus manifestado em Jesus é revelada: sua solidariedade com a humanidade.
O Massacre dos Inocentes
O terceiro episódio é a fuga para o Egito (Mt 2,13-15). No lecionário litúrgico, o relato da fuga para o Egito é proposto na Festa da Sagrada Família no ano A e em 28 de dezembro, juntamente com o episódio seguinte da matança dos inocentes.
A citação do cumprimento a que se refere o episódio é tirada de Jeremias (Jr 31,15). Mateus, ao inserir essa citação, que se refere não ao contexto da escravidão no Egito, mas ao do exílio, a outra grande calamidade que atingiu o povo de Deus, nos anuncia que Jesus está em continuidade com “as duas maiores manifestações do poder salvífico de YHWH” (R. E. Brown).
De fato, a libertação do Egito, à qual o episódio anterior se refere, e o retorno do exílio são exatamente isso: as maiores manifestações do amor de Deus por seu povo; nelas, Israel experimentou a presença de um Deus que andava com eles. Jesus é agora o lugar onde a comunidade cristã pode continuar a ter essa mesma experiência. A proclamação do Deus conosco não é algo abstrato ou puramente interior, mas diz respeito à história concreta da humanidade e seus eventos conturbados. O Deus de Jesus é o Deus da história.
Natal: o sonho de Deus!
O último episódio é o retorno do Egito (Mt 2,19-23). Esse episódio no lecionário litúrgico é lido na festa da Sagrada Família no ano A. Encontramos aqui o último dos sonhos que pontuam as narrativas da infância no Evangelho de Mateus. No primeiro evangelista, o nascimento de Jesus é acompanhado por uma série de sonhos que tornam possível o impossível e permitem que uma história aparentemente sem saída siga em frente e se realize.
O Deus que se revela nas narrativas da infância é o Deus dos sonhos. Essa também é uma característica fundamental da Encarnação e do Natal. O Mistério da Encarnação nos anuncia que Deus tem um sonho sobre a humanidade que ninguém pode impedir ou deter. Jesus é o sonho de Deus que foi realizado e está esperando para ser realizado hoje na vida da Igreja e na existência de cada homem e mulher. Para Mateus, o Natal é a festa dos sonhadores que, como José, sabem como fazer do sonho de Deus o seu próprio sonho.
A todos que ainda desafiam o mundo, insistindo em sonhar e esperançar, eu desejo um Feliz Natal!
Dom Cristiano Sousa OSB Cam
Mosteiro de Santa Cruz de Fonte Avellana – Itália