A experiência da amizade é universal, porque o ser humano, chamado a ser pleno na relação com o outro, precisa de amigos para crescer e cumprir, no mundo, aquilo que foi chamado a ser. Ela é tão importante para a vida, que filósofos como Platão e Aristóteles reconheciam seu papel crucial na manutenção da harmonia e da coesão social, bem como na construção de uma sociedade justa. Também na Igreja, Santo Tomás de Aquino e Santo Agostinho viam a amizade como uma experiência fundamental de crescimento humano e espiritual. Todos esses estudiosos, cristãos e não cristãos, tinham em comum a distinção da “verdadeira” amizade.

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Encontramos esses conceitos também na Palavra de Deus. O livro do Eclesiástico nos diz: “Um amigo fiel é uma poderosa proteção: quem o achou, descobriu um tesouro. Nada é comparável a um amigo fiel, o ouro e a prata não merecem ser postos em paralelo com a sinceridade de sua fé. Um amigo fiel é um remédio de vida e imortalidade; quem teme o Senhor, achará esse amigo. Quem teme o Senhor terá também uma excelente amizade, pois seu amigo lhe será semelhante” (Eclo 6,14-17).
Notemos que o autor sagrado não se refere a qualquer amigo, mas ao amigo fiel, que também podemos chamar de “amigo verdadeiro”. Ora, se existe uma amizade que é verdadeira, esta, obviamente, se distingue de outra que é falsa. Diferenciar esses conceitos pode nos ajudar a perceber em que caminho estamos na vivência de nossas relações com os amigos.
A verdadeira amizade
De acordo com Santo Tomás de Aquino, “chamamos propriamente amigo àquele a quem queremos algum bem” e a caridade é a amizade do homem com Deus, principalmente, e com os outros em Deus (Suma Teológica). Isso implica que a amizade — com base em Cristo e em seu mandamento de amar ao próximo como a nós mesmos — deseja o bem. Serve ao outro com alegria, como quem serve ao Senhor, e o conduz a seguir o caminho que Deus tem para ele. Não prende a pessoa à própria vontade, nem a faz seguir por um caminho errado. O amigo fiel mostra a verdade, ainda que corra o risco de desagradar. E quando o amigo erra, além de corrigi-lo, perdoa-o, se necessário, porque reconhece que a pessoa é muito maior que seus erros.
Um exemplo real de amizade vemos entre Jesus e Marta (cf. Lc 10,38-42). Quando Marta questiona Cristo sobre a atitude de sua irmã, que não a ajuda nas tarefas de casa, o que Ele faz? Mostra, com amor e caridade, que Marta estava errada e que Maria teve uma atitude sensata. Cristo revelou a Marta que Ele estava ali, e o que queria, naquele momento, era a sua companhia.
Marta, por sua vez, não se aborreceu com seu amigo. Foi livre para expressar a sua indignação, mas também para acolher a correção e a usou para crescer. Após a morte de Lázaro, é ela quem primeiro sai ao encontro de Jesus, antes mesmo de Ele chegar à sua casa (cf. Jo 11,20). O Senhor conhecia Marta e corrigiu-a porque a amava, sabia que Ela poderia ser muito mais do que estava se apresentando naquele momento.
Essa amizade entre Jesus e Marta é uma forma honesta de relação, em que a pessoa ama a outra pelo que é e colabora para que ela cresça. Deseja-se o bem do outro, não por interesse ou prazer pessoal, mas por amor genuíno. Essa amizade tende a ser duradoura. É uma relação que leva tempo para ser construída e se faz à medida que se conhece o outro, deixando-o livre para ser quem é e para se expressar.
A falsa amizade
As chamadas relações tóxicas, que causam danos emocionais, psíquicos e físicos às pessoas, não ocorrem apenas em relacionamentos amorosos, mas também nas amizades. Quando, em uma relação, um amigo tenta exercer algum tipo de domínio sobre o outro, que, por sua vez, devido a diversas fragilidades, deixa-se dominar, percebe-se aí um tipo de codependência afetiva. Isso pode ocorrer por tentativas de controle exagerado sobre a vida do outro, por medo de perdê-lo, por baixa autoestima ou por falta de confiança em si mesmo.
Essa “amizade” não eleva o ser humano nem o faz crescer, por isso não pode ser uma amizade honesta. É uma relação perigosa que, em alguns casos, exige ajuda psicológica, psiquiátrica e espiritual para que se alcance a liberdade.
Cuidemos para não nos aprisionarmos a falsos amigos. Eles podem nos influenciar de forma ainda mais sutil, levando-nos a um caminho de decadência, a escolhas erradas com potencial de nos conduzir a vícios ou a consequências piores. Em Provérbios 13,20, o Senhor nos alerta: “Quem anda com os sábios será sábio; o companheiro dos tolos acabará mal.”
O ser humano sempre é livre para escolher seus amigos e decidir se será conduzido ao mal ou se poderá levar o outro ao bem. Se não tiver recursos suficientes para orientar essa pessoa ao bom caminho, afaste-se. Seja um intercessor para que Deus coloque alguém capaz de ajudá-la.
As “não amizades”
Existem relações que não são amizades verdadeiras, no conceito que estamos tratando, embora nem sempre sejam falsas ou nocivas. Elas podem vir a se tornar amizades reais, uma vez que nelas desejamos, numa certa medida, o bem do outro. Vejamos: amizade utilitária são aquelas que surgem por interesses materiais, quando alguém se alia a outro visando retorno, como, por exemplo, para um trabalho escolar ou questões profissionais.
Aqui, busca-se a vantagem. São relações passageiras e frágeis: uma vez encerrada a “necessidade prática”, essa “amizade” se desfaz. O afeto não é pela pessoa em si, mas pelo que ela pode oferecer. Não há profundidade, compartilhamento de valores ou conhecimento mútuo. O bem do outro não é prioridade.
Amizade por deleite: como o nome indica, são relações baseadas em afinidades e lazer. O outro é uma boa companhia. É uma relação típica entre jovens: o amigo da praia, da piscina, das festas e dos hobbies. Sente-se bem com o outro, mas, muitas vezes, é uma relação transitória. Passado o evento ou a fase prazerosa, o vínculo se desfaz. O afeto não está na pessoa, mas no que ela proporciona. Geralmente, essa amizade só permanece enquanto tudo vai bem. Havendo um problema, o amigo desaparece. Contudo, a Palavra de Deus nos ensina: “O amigo ama em todo o tempo; na desgraça, ele se torna um irmão” (Provérbios 17,17).
O que torna uma amizade real?
Para ser considerado amigo de alguém, além de querer o bem, é preciso que haja reciprocidade, convívio, tempo de qualidade dispensado e sobretudo o respeito a essa pessoa. Se caridade e amizade estão relacionadas, como ensina Santo Tomás de Aquino, é do apóstolo Paulo que podemos aprender a manter — ou deixar nascer — novos amigos.
Lembremos: “A caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não tem inveja. A caridade não é orgulhosa. Não é arrogante. Nem escandalosa. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais acabará” (1Cor 13,4-8).