Caro leitor, gostaria de iniciar este artigo recontando uma experiência muito bonita vivida por Vossa Eminência Reverendíssima, o cardeal Sarah, e narrada no livro “A Força do Silêncio”. Tenho certeza de que ela tem tudo a ver com o tema do nosso artigo.
Há, no sul da França, uma abadia cartuxa, a abadia de Lagrasse. Nela, viveu um jovem monge chamado Irmão Vicent-Marie da Ressurreição. Ainda jovem, no melhor da idade, o irmão Vicente deparara-se com uma dura realidade. Exames médicos atestaram que o jovem sofria de uma terrível enfermidade: a esclerose múltipla. Trata-se de uma doença degenerativa que leva à perda dos movimentos corporais.
Em pouco tempo, o jovem fora lançado numa cama de enfermaria e condenado a impiedosos protocolos médicos. O simples ato de respirar para o irmão Vicente exigia um grande esforço. O monge já não podia pronunciar uma única palavra. A amizade entre o cardeal Sarah e o irmão Vicente nascera no silêncio, crescera no silêncio e transformara-se em eternidade. O jovem monge, no domingo do dia 10 de abril de 2016, entregara sua alma a Deus colocando fim na rouca e dissonante respiração, nos achaques da dor e nos últimos movimentos do seu coração.
Exercer a missionariedade para ir além e evangelizar
Que tipo de missionário foi Vicente? Alguém que sequer poderia sair do seu próprio leito! Não podia pregar o Evangelho com as palavras nem escrever textos. Também não podia ler suas orações e menos ainda recitá-las em alta voz. Que missionário era aquele que nem pelo telefone tinha condições de responder ao seu amigo cardeal que devia se contentar apenas com sua respiração ofegante do outro lado da linha?
Testemunham os cônegos que cuidaram do irmão Vicente que ele passou os últimos anos de sua vida rezando pela Igreja e por seu amigo cardeal. Vicente é um tipo de missionário raro, daqueles que sustentam a Igreja no silêncio e na oração. A oração de Vicente, de alguma forma, alcançou a todos nós que estávamos muito preocupados com o trabalho, com a realização pessoal, com os problemas da vida e não tivemos tempo para rezar ou para lembrarmo-nos de Deus. Enquanto corríamos de um lado para o outro, lá no silêncio da abadia de Lagrasse, o irmão Vicente nos sustentava com as suas orações. Um verdadeiro missionário! Alguém duvida?
Diante de todo esse contexto, é possível parafrasear a estrofe de uma canção do padre Zezinho: “Tu, Senhor, minha dor solicitas; minha agonia, que a outros comprazem. Amor que almeja seguir amando”. Fiz essa longa introdução, e já peço perdão por isso, apenas para dizer que a nossa capacidade missionária não deveria estar atrelada somente aos verbos de ação: fazer, realizar, corresponder, atuar, empreender, implementar, produzir, (…), (…), (…).
Quis a ventura da vida nos proporcionar um momento extremamente fecundo para reavaliarmos, não apenas o conceito de “missionariedade”, mas o conceito do próprio “viver”. De alguma forma, mesmo que em pequeniníssimo grau e de maneira passageira, tivemos a fecunda chance de experimentarmos um pouco do que experimentara o irmão Vicente. E não pense que eu esteja me referindo à impossibilidade de realizar grandes coisas ou, pelo menos aquelas que estávamos acostumados a realizar antes da epidemia. Refiro-me à capacidade de entender que a missionariedade está infinitamente mais atrelada ao espírito que à materialidade.
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Cada membro da Igreja pode exercer sua missionariedade
No dia em que toda a Igreja celebra o Dia Mundial das Missões, somos convidados a rezar por toda a Igreja, por cada obra missionária e por todos aqueles que aprenderam a encarnar na sua vida o verbo “caridadear”. Missão, portanto, é vida, missão é viver. Vida e missão que não transbordam o amor de Deus é qualquer outra coisa, menos vida e missão.
Portanto, a pandemia jamais poderia ser cogitada como um empecilho para a missão. Com Covid ou sem Covid, com gripe ou sem gripe, com peste bubônica ou sem peste bubônica, com febre amarela ou sem ela, a missão da Igreja jamais vai se encerrar, pelo contrário, nesses momentos de crise, ela tende a crescer e amadurecer. Isso acontece porque a missão da Igreja não brota somente da inteligência do homem, mas do coração de Deus.
Veja o que disse o secretário da Congregação para a Evangelização dos Povos, dom Protase Rugambwa, arcebispo tanzaniano por ocasião do Dia Mundial das Missões deste ano de 2020: “num contexto profundamente marcado pela pandemia da Covid-19, não se deve desanimar porque a missão não é fruto de capacidades humanas, mas pertence a Deus […]”.
Seja cristão
Depois de apresentar essa breve reflexão, penso que seria oportuno retomar o questionamento usado como título deste artigo: “Em meio à pandemia, como exercer a sua missionariedade?” Sem rodeios, a resposta seria: “sendo um verdadeiro cristão”. A maior e mais importante missão de um cristão é, simplesmente, ser cristão. É importante fazer planos, empreender e agir? Sim. É importante tomar todos os cuidados para se proteger da doença? Logicamente que sim, porém, o mais importante – o essencial – é ser cristão.
“Ser cristão” pode ser traduzido por um vocativo de apenas três letras: “ame”. Coloque a máscara para se proteger do vírus, mas não deixe de amar. Lave as mãos com sabão ou com álcool, mas sem deixar de amar. Se a máscara impede que o seu sorriso seja visto, sorria com os olhos. O nosso irmão Vicente, um grande missionário, mesmo que quisesse, não poderia colocar máscara nem lavar as próprias mãos, porém, o essencial ele nunca deixou de fazer: amou. Vicente, na cama de uma enfermaria, sem poder dizer uma única palavra, nos ensinou o que é ser missionário.