Temos visto que há uma distância abismal entre a vida mundana e a vida de santidade. É como se fossem duas pessoas que estão cada uma de um lado diferente de um rio largo e profundo, com a diferença de que o mundano precisa atravessar o rio, mas ainda não aprendeu a nadar. A verdadeira oração, aquela que me conduz a conhecer a Deus e amá-Lo e conhecer a mim mesmo e me desprezar, ensina a nadar, mas ir para o outro lado é só o começo da caminhada para a santidade. À medida que intensifico a minha vida de oração, percebo que não há amor como o de Cristo por mim. Como disse São Bernardo, “eu bem compreendo o motivo de vossa morte; sei que pecado cometestes: ‘O vosso pecado é o vosso amor’”. Começa a crescer então um desejo ardente de corresponder a esse amor, que é forte como a morte, mas me descubro ainda incapaz disso, porque não paro de ofender Jesus com meu orgulho, minha vaidade, trocando-o por tantos amores vãos e por tantas coisas passageiras. Quanto mais rezo, mais percebo minhas misérias e mais me desprezo, por perceber que sem a graça de Deus não sou capaz de fazer nenhum bem, assim como não sou capaz de fazer um cabelo tornar-se branco ou negro pela minha vontade, como nos ensinou Jesus. Chega um tempo em que percebo claramente a verdade contida na frase de São Josemaria Escrivá: “o teu maior inimigo és tu mesmo”.
Vida de santidade: amor, sacrifício e mortificação
Sou inimigo de mim mesmo porque, como São Paulo, não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero. Aqui entra um ponto crucial na vida de santidade, onde muitos de nós empacamos: queremos ser santos à força das nossas intenções. Como tão bem disse Fernando Pessoa, “Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordamos e ele é opaco, Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira”. Ainda recorrendo às palavras do grande poeta português, o mundo não é “para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão”. “Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu”, arremata o poeta. Quantos de nós trazemos escondidos dentro do peito desejos de amor a Cristo que consideramos os mais belos do mundo! Quantos de nós, na hora de dormir, fazemos propósitos de santidade que fariam corar uma Santa Teresa d’Ávila e um São Pio de Pietrelcina! Quantos de nós nos ajoelhamos com tal piedade diante de Jesus Sacramentado que chegamos a pensar que poderíamos nos desmanchar em lágrimas de amor! Nesses momentos, sentimos que conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama, mas acordamos e ele é opaco… Trazemos no peito tanto amor hipotético, tantos sonhos de santidade, mas basta que o chefe nos dirija uma palavra atravessada e já nos enchemos de rancor ou autopiedade; basta que o cônjuge manifeste um defeito recorrente e seja injusto conosco e toda boa intenção escorre pelo ralo e o homem velho grita, esperneia e “mostra as unhas”.
É que a santidade não é uma empreitada feita de intenções de amor, mas de atos concretos de amor. Por isso não podemos ficar no mundo dos sonhos, imaginando em que morada estamos ou com que santo nos parecemos. É preciso pôr a mão na massa e lutar, pois ainda que saibamos que dependemos inteiramente da graça para amar a Deus acima de todas as coisas, é preciso deixar a nossa casa arrumada, sem entulhos, para que Deus possa nela habitar. É nesse ponto que entram o sacrifício, a mortificação, a penitência. A alma tem aspirações elevadas, quer as coisas santas, mas o corpo quer consolações, prazeres. Quando as nossas paixões estão desordenadas dentro de nós, o corpo é conduzido pelos sentidos, arrastado pela concupiscência e não tarda a cair no pecado, jogando por água abaixo aquele sonho tão piedoso em que éramos os mais irrepreensíveis e santos. Precisamos domar o nosso corpo, tê-lo como escravo ao invés de sermos escravizados por ele, como nos diz São Josemaria Escrivá, e isso passa pela mortificação e pelo sacrifício.
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O heroísmo dos pequenos sacrifícios
Existe uma parcela de penitência que é voluntária e que devemos buscar para preparar nosso corpo para as provações involuntárias. Aí entram o jejum, as mortificações e as abstinências, ofertas que fazemos movidos unicamente por amor a Deus, que sabemos que também aproveita a dinâmica da nossa própria vida para nos dar oportunidade de fazermos sacrifícios. Quantas provações grandes e pequenas, que poderiam nos ajudar a crescer na santidade, nós desprezamos por não abraçá-las com amor! Quando se fala nisso, normalmente se pensa em doenças graves, perda de entes queridos, privações sérias, como fome, mas o fundador da Opus Dei nos ensina o heroísmo dos pequenos sacrifícios:
“Quantos se deixariam cravar numa cruz perante o olhar atônito de milhares de espectadores, e não sabem sofrer cristãmente as alfinetadas de cada dia! – Pensa então no que será mais heroico”.
No caminho de santidade, nos depararemos com algumas rochas imensas que teremos que contornar ou escalar, mas isso costuma ser exceção. No dia a dia, teremos que lidar com pedrinhas que entraram no sapato, pequenos espinhos nos galhos à beira da estrada, o calor até a sombra mais próxima, a poeira que entra nos olhos. Trazendo para a vida, isso significa suportar com mansidão as pequenas provações, que se repetirão dia após dia, e que por isso mesmo precisam ser vividas por amor a Cristo, senão tornarão a nossa vida uma contínua lamentação. Seu cônjuge não se conserta num pequeno mau hábito, como ser desatento com você, por mais que você tenha conversado inúmeras vezes a esse respeito? Suporte essa alfinetada de cada dia por amor a Cristo. Pense em quantas vezes as pessoas foram desatentas com Cristo e mesmo assim ele as amou. Pense em quantas vezes você foi desatento com o Senhor e ainda assim ele o ama. Peça a Deus a graça de identificar, nas pequenas chateações do seu dia a dia, oportunidades de amá-Lo, de reparar as ofensas que você comete contra Nosso Senhor e de consertar seus muitos defeitos.
Realidades simples da vida e santidade
O mundano vive confortavelmente no seu apartamento, de onde avista o mar, a uma segura distância. Aquele que se deixa apaixonar por Deus larga tudo, pega seu barquinho e começa a navegar rumo ao alto mar. A oração move-o nessa decisão radical de amor de sair da aparente segurança da terra firme e lançar-se ao mar. Também é a oração que dá forças para que continue remando, mas é a penitência e a mortificação que fortalecem o barco para suportar as ondas e os ventos das provações, que se tornam mais intensos à medida que você se afasta da praia. Talvez você esteja se perguntando o que toda essa história de barcos e apartamento com vista par o mar tenha a ver com a sua vida concretamente. Como é que uma pessoa comum, como você e eu, que estamos lidando com as realidades mais simples da vida, como pagar conta de luz e preparar o almoço, pode dar passos concretos para buscar a santidade? Esse será o assunto do próximo texto.