Papa Francisco e a dinâmica da continuidade apostólica
O pontificado do Papa Francisco insere-se na linha da sucessão apostólica, de São Pedro até os dias atuais. Essa é a primeira característica desse papado. Francisco, como seus antecessores, colocou-se nessa dinâmica de continuidade que se realiza, em primeiro lugar, na pessoa do Pontífice, mas também nos diversos organismos pastorais, jurídicos e administrativos da Cúria Romana e da Santa Sé. Nenhum pontificado é isolado! Uma grande novidade no governo de Francisco foi a presença do Papa Emérito Bento XVI. Como é de conhecimento, em outros momentos históricos, a Igreja conviveu com a figura de papas que renunciaram, até inclusive administrou, não sem dificuldades, a existência de mais de um papa (período denominado cisma do Ocidente – 1378-1417).

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Evidentemente, aquele legítimo era um só! É verdade que a figura de um “Papa Emérito” poderia causar certo desconforto nas decisões a serem tomadas, porque, mesmo na dinâmica da continuidade, cada pontificado traz seus aspectos próprios. Papa Francisco, entretanto, conviveu bem com o seu antecessor, seja em aparições públicas ou em diversos encontros e visitas reservados. Os dois nutriram entre si um grande respeito e admiração. As palavras de Francisco para Bento XVI na ocasião dos 65° aniversário de ordenação sacerdotal, em 2016, revelam a grande estima e amizade entre eles: “Que Vossa Santidade possa continuar a sentir a mão de Deus misericordioso que o ampara, possa experimentar e testemunhar-nos o amor de Deus; que, com Pedro e Paulo, possa continuar a exultar com grande alegria enquanto caminha rumo à meta da fé”.
Uma Igreja com as Portas Abertas
Bento XVI, por sua vez, agradeceu a Francisco com essa significativa mensagem: “Obrigado sobretudo a Vossa Santidade, Santo Padre! A sua bondade, desde o primeiro instante da eleição, em cada momento da minha vida aqui, impressiona-me, comove-me deveras interiormente. Mais do que os Jardins do Vaticano, com a sua beleza, é a Sua bondade o lugar onde eu habito: sinto-me protegido”. É verdade que, em alguns momentos, o próprio Papa Francisco afirmou a possibilidade da renúncia em casos muito específicos. No entanto, ele tinha claro que essa prática não deveria tornar-se ordinária na Igreja e, talvez por isso, seguiu adiante até a morte.
Pensar no pontificado do Papa Francisco é pensar na sua dimensão pastoral. Várias vezes, o Pontífice criticou práticas religiosas obsoletas, que não estavam de acordo com o Evangelho e a doutrina católica. Além disso, foi severo contra o clericalismo e contra todo tipo de desvinculação entre Igreja e Evangelho. Para ele, a realidade era mais importante que a ideia (Evangelii Gaudium 231), ou seja, o importante é a acolhida das pessoas, o espaço para todos na Igreja e, depois, caminhar juntos, ancorados na doutrina católica, como ponderou diversas vezes no Sínodo sobre a Sinodalidade. A sua concepção de Igreja era aquela de uma Igreja servidora, missionária, acolhedora.
“A Igreja em saída é uma Igreja com as portas abertas” (EG 46). Nesse processo lembramos a sua insistência em mostrar o rosto misericordioso de Deus, visível no Jubileu da Misericórdia (2016) e no envio de “missionários da Misericórdia” mundo afora. “Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. Precisamos sempre contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade e paz (Misericordiae vultus 1-2). Papa Francisco foi ainda o Papa das periferias mundiais e existenciais. Basta analisar o destino das suas viagens apostólicas, os discursos proferidos, os eclesiásticos escolhidos para o cardinalato. Durante as Congregações Gerais em 2013, na preparação do Conclave, o Cardeal Jorge M. Bergoglio falou aos cardeais sobre o perfil do novo Papa: “Um homem que, por meio da contemplação e da adoração de Jesus Cristo, ajudará a Igreja a sair de si mesma em direção às periferias existenciais, que a ajudará a ser a mãe frutífera que vive da ‘doce e reconfortante alegria de evangelizar’”.
Entre os pobres até o fim
Foi ele mesmo quem realizou essa tarefa! Na ocasião da sua morte, incontáveis são as manifestações de pesar pela sua partida. Muitas dessas manifestações vêm de setores que não são católicos e outros tantos não-cristãos. Nesse sentido, a força expressiva dos gestos do Papa e sua atuação religiosa-política em defesa de pobres, marginalizados, minorias e esquecidos ecoam mundo afora. Tudo isso a começar do nome escolhido por ele: Francisco. O modelo era o pobre frade de Assis!
No dia 24 de abril de 2025, a Santa Sé publicou a seguinte notícia sobre o sepultamento do Papa: “Os pobres ocupam um lugar privilegiado no coração de Deus. Assim também no coração e no Magistério do Santo Padre, que escolheu o nome Francisco para nunca esquecê-los. Por essa razão, um grupo de pessoas pobres e necessitadas estará presente nos degraus que levam à Basílica Papal de Santa Maria Maior para prestar sua última homenagem ao Papa Francisco antes do enterro de seu caixão”.
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Para Francisco, todas as pessoas merecem respeito, merecem uma oportunidade e merecem ser escutadas nas suas dores e feridas. É oportuno lembrar a sua severidade contra os abusos sexuais cometidos por membros da Igreja, a sua atenção para com as vítimas, além do incansável apelo para o fim do que ele chamou de “terceira guerra mundial em pedaços”. Para além desses aspectos, Papa Francisco foi o Papa da economia solidária, do pacto educativo global, do insistente chamado ao cuidado da “casa comum” e da amizade fraterna entre os povos, especialmente no acolhimento dos imigrantes. Estamos todos a caminho! Na homilia da Missa pelas vítimas dos naufrágios em Lampedusa (Itália), Papa Francisco foi incisivo: “A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas, mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença.
O Papa da santidade do cotidiano
Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa”. Finalmente, é preciso destacar que Francisco foi o Papa da Santidade. Em meio aos seus tantos documentos, a Exortação Apostólica Gaudet et exsultate nos faz entrar no coração do seu pontificado. Todas as pessoas são chamadas, vocacionadas à santidade. “Não pensemos apenas em quantos já estão beatificados ou canonizados. O Espírito Santo derrama a santidade, por toda a parte, no santo povo fiel de Deus” (Gaudet et exsultate 6).
E o Papa dizia ainda: “Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Nesta constância de continuar a caminhar dia após dia, vejo a santidade da Igreja militante. Esta é, muitas vezes, a santidade «ao pé da porta» daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus, ou – por outras palavras – da «classe média da santidade»” (GE 7).
Nesse espírito, o Papa Francisco canonizou mais de 900 santos ao longo dos seus 12 anos como Pontífice. Digna de nota é a canonização de Santa Dulce dos Pobres, brasileira, em 2019. Francisco sempre lembrou que o centro da vida cristã é Jesus Cristo e tudo começa, prossegue e termina n’Ele. Pensar em Francisco como o Papa da santidade, da oração, da devoção a Nossa Senhora, a quem visitou mais de 200 vezes na Basílica de Santa Maria Maior durante o seu pontificado, recorda-nos que o Papa não é, em primeiro lugar, um político; não é, em primeiro lugar, um chefe de Estado; não é, em primeiro lugar, um líder mundial. Ele é o Bispo de Roma, o Vigário de Jesus Cristo, o sucessor do Príncipe dos Apóstolos, o Sumo Pontífice, o Servo dos Servos de Deus!
Após a morte de Francisco, muitas são as opiniões sobre o seu governo. Se foi de direita ou de esquerda, se foi progressista ou conservador. Tudo isso são visões “mundanas” do papado. Cada tempo necessita de respostas próprias, atualizadas e firmes para os desafios que se apresentam. Por isso o essencial é ver em Francisco, nos seus antecessores e sucessores, a continuidade na história de uma instituição divina, a Igreja. Sendo assim, após Francisco, a Igreja seguirá seu caminho, e o próximo Papa será aquele que a Igreja necessitará no período em que vive, iluminada e guiada pelo Espírito Santo!
Pe. Eduardo M. Guimarães
Dioc. Cornélio Procópio, PR, Doutorando em História da Igreja – Pontifícia Universidade Gregoriana