CF 2014 reflete sobre a banalização da vida e a perda da noção de moralidade contra os seres humanos
Os diagnósticos da crise contemporânea apontam processos corrosivos de desumanização, pesando existencialmente sobre os ombros de todos. É incontestável a perda do sentido da própria vida, com consequentes atentados contra a dignidade do outro. Violências de todo tipo permeiam as relações sociais e humanas como o tráfico de pessoas – tema da Campanha da Fraternidade (CF-2014) – a banalização da vida e a perda da noção de moralidade, que resultam no desrespeito aos valores essenciais do ser humano.
Essa desumanização que alimenta dia a dia o aumento da violência e intensifica a inércia de ações governamentais e cidadãs, exige reação urgente e massiva na reconfiguração dos cenários socioculturais e políticos.
Tem-se a impressão de que a sociedade contemporânea é um caminhão desgovernado ladeira a baixo, sem freios. De tudo acontece. Tudo parece possível quando deixa de existir clareza sobre os valores do bem e do mal na vida social e familiar. Diante desta realidade, é compromisso inegociável do cristão o combate diuturno para fazer triunfar o bem e a justiça.
Ardiloso, o mal não se dobra facilmente a qualquer ameaça. Vencê-lo requer estratégias inteligentes, de racionalidade e de vontade política próprias de quem tem estatura cidadã. Mas só a espiritualidade é capaz de sustentar a competência daquele que assume esta luta. Só ela tem poderes para alargar os corações e capacitar as pessoas para uma compreensão que ultrapassa a simples lógica das relações formais e conduzir à construção de uma sociedade justa e solidária, por meio do aprendizado do amor a partir de sua gênese: a fonte inesgotável, o amor, Deus revelado de maneira plena na pessoa de seu Filho, Jesus Cristo, Salvador e Redentor. Significativo é ter presente o ápice do diálogo de Jesus com Nicodemos, narrado pelo evangelista João, quando o Mestre diz: ‘Deus amou tanto o mundo, que deu o seu filho único, para que todo aquele que nele crer não pereça mas tenha a vida eterna’.
Não se pode ser coração da paz e, assim, vencer o mal, sem beber da fonte do amor, que o limite humano não garante, em si. E este amor de Deus, na história da humanidade, se personifica em Jesus Cristo. Se há essa compreensão, permanece cotidianamente o desafio de aproximação dessa fonte e o usufruto da oferta dadivosa que ele faz de si, com ensinamentos e gestos que, imitados e testemunhados, podem fazer de cada coração da paz instrumento de consecução de uma dinâmica social e política que promova a dignidade humana.
Esses espantosos diagnósticos de desumanização da sociedade contemporânea precisam ser afrontados, com o propósito inadiável de nova configuração, em segurança pública, educação, trabalho, saúde, moradia, política menos partidarista e mais cidadã. Pela garantia de oportunidades para todos, por uma cultura que supere a exclusão social. Sendo assim, a reconquista da humanização que se anseia neste momento, com a reorganização das diversidades de todo tipo, autonomias e liberdades, demandas e prioridades, só será possível por meio de uma espiritualidade enraizada, fazendo de cada pessoa coração da paz.
A vivência da Semana Santa, a Semana Maior, fixando o olhar na revelação plena do amor de Deus, aproximando-nos da fonte inesgotável, é a grande oportunidade para se recuperar a espiritualidade tão necessária. A superficialidade de fazer da Semana Santa um feriadão pode ser um equívoco. O repouso justo, o silêncio fecundante, a oração alargadora do coração, as abstinências, a sensibilização pela escuta e a celebração do mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus são possibilidades fecundas para um novo tempo de vida pessoal e comunitária em busca do indispensável vigor espiritual.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte