Sem a prática do silêncio, o nosso falar adoece
São Josemaria Escrivá dizia que “o silêncio é como o porteiro da vida interior” (Caminho, 281). Em sentido contrário, é verdade a máxima “muito barulho, pouca interioridade”, que, certa vez, escutei de Vera Lúcia Reis, formadora geral da Comunidade Canção Nova. De fato, em meio a um mundo cada vez mais barulhento e uma vida continuamente sufocada pelos deveres e urgências, o não cultivo da arte e virtude do silêncio pode ter como consequências a gradual fragmentação do ser e deterioração da vida espiritual. Dessa forma, parafraseando quando o Papa Francisco disse que “sem a prática do silêncio o nosso falar adoece” (audiência geral 15/12/21), poderíamos afirmar que sem o silêncio nossa alma adoece. Ou seja, a falta de silêncio não leva apenas a uma superficialidade da vida de oração, mas atenta contra nossa interioridade mais profunda, fazendo-nos perder a capacidade de sentir a doce paz que a consciência de nossa filiação divina porta.

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Encontrar a verdadeira estatura no silêncio
Ante esse quadro, emerge a importância de falar de uma necessária solidão e um salutar silêncio, que podem qualificar nossa experiência de Deus e o conhecimento e domínio de nós próprios. Em seu livro “Catecismo da vida espiritual”, o cardeal Robert Sarah diz que “é na abnegação e no silêncio que o homem encontra sua verdadeira estatura, torna-se atento a Deus e compreende que precisa Dele”. Encontrar a verdadeira estatura no silêncio… Talvez essa frase explique o porque depois que Jesus, no Batismo do Jordão, escutou a voz que dizia: “Tu és o meu Filho amado” (Lc 3,22) foi impelido para o deserto (Lc 4,1). Antes de entregar-se à árdua missão, Jesus foi ao deserto buscando a solidão e o silêncio para favorecer o aprofundamento do mistério de seu próprio ser, revelado no batismo do Jordão.
O deserto é um lugar de silêncio e solidão
Dessa forma, nas palavras do Cardeal Sarah, “ao ir para o deserto, Jesus decidiu excluir radicalmente todas as fontes de distração, agitação e barulho que são os inimigos de uma vida de oração e intimidade com Deus […] para entrar no silêncio de Deus”. Entendemos ainda a riqueza e necessidade do estado de solidão e silêncio do deserto nas palavras de Ratzinger: ”O deserto é um lugar de silêncio e solidão, onde nos distanciamos dos acontecimentos. É um lugar para fugir do barulho e da superficialidade. O deserto é o lugar do absoluto, o lugar da liberdade, onde o homem é confrontado com suas exigências mais importantes. Não é por acaso que o deserto é lugar do nascimento do monoteísmo. Nesse sentido, ele é o reino da graça. Esvaziado de suas preocupações, o homem ali encontra seu Criador. Grandes coisas começam no deserto, no silêncio e na pobreza” ( apud SARAH, p. 107) .
O silêncio de Deus
Para além do deserto, o Papa Bento XVI mostrou a importância do silêncio na vida de Jesus em sua exortação apostólica Verbum Domini quando, referindo-se ao Gólgota, diz que, ali, “vemo-nos colocados diante da “Palavra da cruz” (cf. 1 Cor 1,18), (Onde) o Verbo emudece, torna-se silêncio de morte, porque se ‘disse’ até calar, nada retendo do que nos devia comunicar”(n. 12). Dessa forma, como mostra a cruz de Cristo, Deus fala também por meio do seu silêncio. O silêncio de Deus, a experiência da distância do Onipotente e o Pai é etapa decisiva no caminho terreno do Filho de Deus, Palavra encarnada. Suspenso no madeiro da cruz, o sofrimento que Lhe causou tal silêncio fê-Lo lamentar: ‘’Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’’. (Mc 15, 34) (Verbum Domini, n. 21).
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Ainda no âmbito dos ensinamentos de Bento XVI, vemos que a experiência de silêncio de Jesus é sintomática da situação do homem que, depois de ter escutado e reconhecido a Palavra de Deus, deve confrontar-se também com o seu silêncio. É uma experiência vivida por muitos Santos e místicos, e que ainda hoje faz parte do caminho de muitos fiéis. O silêncio de Deus prolonga as suas palavras anteriores. Nestes momentos obscuros, Ele fala no mistério do seu silêncio. Portanto, na dinâmica da revelação cristã, o silêncio aparece como uma expressão importante da Palavra de Deus (n.21) .
No silêncio, entraremos Deus e n’Ele a nós mesmos
Finalmente, devemos reconhecer que nem sempre é fácil a experiência do silêncio, pois, por vezes, “o silêncio assusta-nos um pouco, porque nos pede para entrarmos em nós mesmos e encontrarmos a parte mais verdadeira de nós” (Papa Francisco, audiência geral 15/12/21). Porém, considerando que o silêncio é a condição essencial e indispensável que nos permite escutar Deus e em Deus nos descobrir”, é preciso treinar os ouvidos e todos os sentidos para o silêncio das palavras, imagens e até mesmo dos agitados pensamentos que, por vezes, insistem em gritar dentro de nós, mesmo quando os barulhos externos se calam. Enfim, vale ainda lembrar outro ensinamento de Bento XVI: ”O silêncio é capaz de escavar um espaço interior no nosso íntimo, para ali fazer habitar Deus, para que a sua Palavra permaneça em nós, a fim de que o amor por Ele se arraigou na nossa mente e no nosso coração, e anime a nossa vida” (Audiência Geral,07/03/12).
Enfim, busquemos o silêncio, pois a atitude do silêncio nos coloca num estado de presença de Deus, busquemos o silêncio e nele encontraremos Deus e n’Ele a nós mesmos!
Wilker Henrique Costa Fiuza
Membro da Comunidade Canção Nova desde 2008. Mestre em Teologia Sistemática (2023). Formado em Filosofia (2011). Professor na Faculdade Canção Nova (www.fcn.edu.br), casado e pai de dois filhos.
Referências:
BENTO XVI. Audiência geral, 07 de Março de 2012. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2012/documents/hf_ben-xvi_aud_20120307.html
FRANCISCO. Audiência geral, 15 de dezembro de 2021. Disponínvel em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2021/documents/papa-francesco_20211215_udienza-generale.html
SARAH, Robert. Catecismo da vida espiritual. São Paulo SP: Fons Sapientiae, 2024.