O amigo fiel não tem preço

Observando um pouco mais de perto os homens e mulheres com quem condividimos a existência, notamos como estão à procura de valores mais estáveis e duradouros do que lhes oferece o frenesi da vida moderna. Ninguém admite ser englobado pelas regras do mercado, da oferta e procura, ser peça de engrenagem.

Um dos sonhos mais freqüentes, a que respondem buscas e carências, é o de verdadeiras amizades, em que, infelizmente, muitos já não acreditam mais… Tudo parece tão transitório, fugaz, efêmero, evolutivo e involutivo, descartável e provisório. O sublime amor da amizade se afigura como miragem, como quimérica utopia… Mas não se pode inverter ou destruir a psicologia humana, a autêntica antropologia que ainda nos leva a buscar a ultra-passagem das frustrações e a empenhar-nos por algo mais humano e compensador. A história profana e sagrada está repleta de exemplos de amizade que encantam e fascinam. São conhecidos. Não carece apontá-los aqui. Sabemos que há pelo menos dois níveis de verdadeira amizade: o nível natural e o nível sobrenatural e divino.

Naturalmente, a amizade é dividida, partilhada como enriquecimento recíproco de duas ou mais pessoas através da benevolência sem limites. Quanto mais profunda é a amizade, mais elevada será a perfeição alcançada, que não cabe em medidas ou graus computáveis. Há amizades verdadeiramente sublimes a partir de valores meramente humanos condivididos: o amor à arte, o saber a luta pela paz, a procura da justiça, o esporte, viagens, a estima da simplicidade. Como foi chorada a maior amiga da Índia: Teresa de Calcutá! A perda da Irmã Dulce fez chorar a Bahia e o Brasil inteiro. Muitos amigos e amigas esta vida já me concedeu! Muitos deles são envoltos pela saudosa lembrança das lágrimas agradecidas, além dos umbrais da morte. A gratidão minha as acompanha.

Em termos naturais, a amizade é a forma mais sublime e completa do amor que põem os amigos ao mesmo nível da valia e apreço. Um eleva o outro, jamais faz descambar ou declinar, porquanto a amizade é impulso de aperfeiçoamento e conquista do que há de melhor. Desta forma, há um acrisolamento, um constante enaltecimento no cultivo da amizade.

Há que sublinhar fortemente um dado importante: a amizade jamais pode ser conivência com o mal, o destrutivo ou deletério. Seria pseudo-amizade, contradição do próprio conceito de amizade. A amizade somente eleva e constrói. Entre amigos há uma série de atrativos que se manifestam, ordinariamente, pela comunhão de ideais, de anseios, aspirações, de alegrias e quaisquer sofrimentos e superamentos. É essencial, que neste relacionamento amical ocupem papel insubstituível a presença do bem comum, a fidelidade comprovada, a sinceridade, o interesse altruísta, a confiança recíproca, a alegria do sacrifício e da doação pela pessoa amada.

A amizade, em momentos alegres e tristes, é um tesouro inesgotável de recursos e inspirações. É como fonte genuína que conforta e desaltera sem cessar. É fogo que transforma e desfaz quaisquer friagens ou desalentos. A amizade é um perene oásis existencial.

Em âmbito e clima divino, na esfera do sobrenatural, a amizade atinge níveis incomensuravelmente maiores. O amor da amizade se ancora e firma em elemento eterno que é o próprio amor de Deus. O intercâmbio recíproco de valores tem como etiologia ou causa a própria perfeição de Deus que os inunda e transforma. O fim e o dinamismo de tal amizade é o progresso espiritual na conquista crescente da virtude, aquietando a sede do bem, do amor e da verdade. O fim último que impulsiona tais amizades é a própria glória de Deus, o reflexo do Criador no ser e agir das criaturas, que assim se irmanam e enriquecem reciprocamente. A hagiografia nos apresenta muitas amizades assim: a de São Basílio e São Gregório Nazianzeno, São Francisco e Santa Clara, São Francisco de Sales e Santa Joana Francisca Chantal, Paulo de Tarso, o apóstolo das gentes, se alegrava e reanimava nas tribulações com a amizade de Tito e Timóteo. O próprio Cristo partilha a mais estreita amizade com os apóstolos, especialmente, com João e Pedro. Semelhantes amizades tinham como suporte a colaboração nas maiores e melhores causas, a confidência de segredos “escondidos em Deus”, o intercâmbio de valores evangélicos e redentores.

No grau mais alto, a amizade anela e sonha pela amizade com o próprio Deus uno e trino. Como guindar-se a tais alturas? Deus não pode ser enriquecido ou enaltecido por nenhuma amizade humana, porquanto é ser perfeitíssimo. Não há termo comum em que alicerçar tal amizade a menos que o próprio Deus coloque as condições para o desabrochar dessas amizades divino-humanas, queridas por Ele. Para que haja amizade, então se requer certa igualdade, paridade, “parentesco ontológico”. Deus tanto quer essa amizade que Ele próprio cria as condições: põe no homem a identidade de sua imagem; faculta a possibilidade do diálogo através da Palavra inspirada; instila em nós a “semente divina” que nos torna participantes da própria natureza divina (Cf. 1 Jo 3,9; 2 Pd 1,4). Assim abre-se o caminho para o diálogo teândrico. Além disso a própria Trindade faz moradia em nosso íntimo (Jo 14,23) e nos enriquece com os “próprios sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2,5).

Tornamo-nos templos, moradia do Senhor e, desta forma, a benevolência com Deus e por Deus é o grau mais excelso de amizade que imaginar se possa. Essa amizade – tão freqüente e averiguável nos Santos e Santas – estabelece uma intimidade transformante que não é atingível nos outros níveis da amizade. O amor de Deus, contudo, é único e incomparável: eterno, oblativo, generoso, desinteressado, preveniente e infinito.

Não somos capazes de ascender a semelhantes píncaros, sobrando-nos apenas a disponibilidade da aceitação desse amor e a doação constante do que somos e temos (por sua graça). Prorrompemos, então em exclamações sugestivas como essas:
“Meu Deus e meu tudo!”
“Só Deus me basta!”
“Sou todo teu!”
“Fica conosco, Senhor!”
“Morro porque ainda não morro!”
Saibamos apreciar, aceitar e enaltecer o inestimável valor da amizade, sol e luz em nossa vida!

Dom Eusébio Oscar Scheid
Arcebispo do Rio de Janeiro