O Novo Ano é sempre portador de esperanças. Desta vez, esse episódio cíclico adquire mais ampla dimensão, por coincidir com a substituição do Supremo Mandatário desta Nação e dos Governadores dos Estados. Nele se celebra também o Dia Mundial da Paz.
Em minha vida, tive oportunidade de assistir a muitos inícios e términos de administração dos escalões Federal, Estadual e Municipal. Aprendi, entre outras, duas lições. A primeira é o ato de posse no Governo se assemelhar ao alvorecer do dia, com seus entusiasmos e otimismos; o encerramento da missão confiada pelo voto popular ao entardecer, ora tranqüilo ora, às vezes, melancólico. A outra é a sensação de transitoriedade dos cargos, da vida humana, que nos vem no momento solene da posse, especialmente, em certos cargos. As pessoas, mesmo poderosas, sempre passam ou descem à planície, mas a Igreja continua seu caminho. Fundada por Jesus Cristo há quase dois mil anos, tem enfrentado as mais variadas tempestades e ei-la cheia de vitalidade, em nossos dias. Bons ou defeituosos, seus membros ultrapassam hoje a cifra de um bilhão de indivíduos. Os homens, os que a amam ou odeiam, desaparecem no decorrer dos tempos e ela permanecerá.
Com humildade e diante de Deus, meditemos por ocasião do Ano Novo, na mudança do Governo desta Nação e deste Estado. Nós não somos meros assistentes do que ocorre. Cada um é co-responsável e, portanto, daremos contas a Deus. A tomada de posse nos adverte sobre o dever de cooperar em prol do bem comum. Esse momento é de grandeza, de busca sincera, de entendimento que multiplique as forças e não fomento de divisões estéreis. Os interesses egoístas ou corporativistas, cedam lugar a sentimentos nobres. Recordemos que todo esse quadro se estrutura sobre o alicerce dos valores morais. E, evidentemente, sem o auxílio de Deus, em vão trabalham os homens: Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem
(Sl 126,1).
O primeiro dia deste Ano Novo, além de coincidir com a posse do Governante da Nação brasileira e dos Governadores, comemora-se o XXXVI Dia Mundial da Paz, que em 2003 tem por tema Pacem in terris um compromisso permanente.
A Mensagem do Papa João Paulo II por ocasião desse evento, assim começa:
Transcorreram quase quarenta anos, desde aquele dia 11 de abril de 1963: era Quinta-feira Santa. Dirigindo-se a todas as pessoas de boa vontade, o meu venerando Predecessor, que morreria passados dois meses, resumiu a sua mensagem de paz ao mundo na primeira afirmação da Encíclica A paz na terra, anseio profundo dos seres humanos de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus. Já havia o muro de Berlim e o Papa falava para todos, tanto de um lado como do outro, desse sinal de divisão. Apelava a todos, os católicos e não-católicos; ele buscava homens de boa vontade para construir um mundo novo.
Nesse Dia Mundial da Paz, a Mensagem de João Paulo II resgata a riqueza extraordinária contida na Encíclica Pacem in terris, e atualiza seus ensinamentos à luz da realidade hodierna. João XXIII se dirigia a um mundo em situação de profunda desordem. Em 60 anos do século XX, a Humanidade foi flagelada por duas guerras mundiais, os dois sistemas totalitários, o comunismo e o nazismo, causaram imensos sofrimentos. E a Igreja suportou a maior perseguição até então conhecida na História (Mensagem, nº 2). O bom Papa João, como o povo a ele se referia, no entanto, acreditava na possibilidade da paz e identificou quatro exigências concretas da alma humana, como condições essenciais para alcançá-la: a verdade, a justiça, o amor e a liberdade. A primeira coluna, a verdade, leva o indivíduo a tomar consciência dos próprios direitos, mas também dos seus deveres. A segunda, a justiça, edificará a paz se cada um respeitar concretamente os direitos alheios. O amor será fermento da paz se as pessoas sentirem como próprias as necessidades dos outros e partilharem com eles o que possuem. A última, a liberdade alimentará e fará fortificar a paz se os indivíduos, na escolha, nos anseios para alcançá-la, seguirem a razão e assumirem compromissos e responsabilidade pelos próprios atos (Mensagem, nº 3).
Diz João Paulo II, na sua Mensagem, que João XXIII entreviu e interpretou os dinamismos profundos que surgiram e atuaram na História humana, algo que o Papa identificou como o indício promissor de uma revolução espiritual (Mensagem, nº 3). Havia sinais claros como o fim do colonialismo, os novos Estados independentes, maior compreensão dos direitos dos trabalhadores, o ingresso das mulheres na vida pública, a convicção de que todos os seres humanos são iguais entre si pela dignidade da natureza, maior consciência de certos valores espirituais. O Papa estava convencido de que essa sensibilidade espiritual mais viva haveria de ter conseqüências públicas e políticas (…) À vista da crescente consciência dos direitos humanos que se ia manifestando a nível nacional e internacional, João XXIII intuiu a força contida em tal fenômeno e o poder extraordinário que tinha para modificar a História (…) Trata-se por conseguinte, dos direitos e deveres universais, invioláveis e inalienáveis (Mensagem, nº 4). Essas idéias, com vastas conseqüências práticas, foram amplamente expostas por João Paulo II em seu discurso de 5 de outubro de 1995, na Assembléia das Nações Unidas.
A Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2003 aborda ainda o bem comum universal, uma nova ordem moral internacional, a ligação entre paz e verdade, as premissas de uma paz duradoura e uma cultura da paz.
O Ano Novo, a posse do Presidente da República e dos Governadores dos Estados, o Dia Mundial da Paz constituem uma oportunidade para reflexões profundas que nos levem a propósitos em favor da paz e da concórdia.
Cardeal D. Eugenio de Araújo Sales
Arcebispo Emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro