Criados para Deus

O ‘Catecismo da Igreja Católica’ (CIC), aprovado pelo Papa João Paulo II, logo no seu início nos relembra a grande dignidade do homem:

‘O aspecto mais sublime da dignidade humana está nesta vocação do homem à comunhão com Deus. Este convite que Deus dirige ao homem, de dialogar com ele, começa com a existência humana. Pois se o homem existe, é porque Deus o criou por amor e, por amor, não cessa de dar-lhe o ser, e o homem só vive plenamente, segundo a verdade, se reconhecer livremente este amor e se entregar ao seu Criador’ (CIC nº 27, GS 19,1).

Essas palavras iluminadas do Concílio Vaticano II nos ensinam que Deus nos criou para ‘dialogar’ conosco e ‘nos quer na sua intimidade’.

Quando Deus criou o homem e a mulher, os colocou no seu ‘jardim’ (Gen 1,15). Esse ‘jardim’ do Éden representa a intimidade e o desfrutar (fruir) de suas riquezas insondáveis.

Quando queremos bem a alguém, o melhor que podemos oferecer-lhe é levá-lo para casa, fazê-lo participar de uma refeição conosco e desfrutar a nossa intimidade. Isto só concedemos àqueles que amamos e que confiamos de verdade. Foi assim que Deus fez com nossos primeiros pais: Mas eles não souberam ser fiéis à confiança que o Senhor neles depositou.

A Igreja, na sua infalibilidade doutrinal, ensina que no Paraíso Adão e Eva foram constituídos em um estado ‘de santidade’ e de ‘justiça original’. Esta graça da santidade original era uma participação da vida divina (CIC nº 375, LG,2). O estado de ‘justiça original’ significava o domínio perfeito de si mesmo, sua perfeita harmonia interior, a harmonia entre o homem e a mulher, e a harmonia do primeiro casal com toda a criação.

Ensina-nos o Catecismo que: ‘Enquanto permanecesse na intimidade divina, o homem não deveria morrer (Gen 2,17; 3,19), nem sofrer (Gen 3,16)’ (CIC nº 376).

Foi o pecado, a desobediência à Deus, que fez com que o primeiro casal, e toda a humanidade, perdessem esse glorioso estado de vida.

O pecado original é uma verdade essencial da nossa fé. O Catecismo diz que: ‘A Revelação dá-nos a certeza de fé de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido pelos nossos primeiros pais’ (CIC nº 390). E acrescenta:
‘A Igreja, que tem o senso de Cristo, sabe perfeitamente que não se pode atentar contra a revelação do pecado original sem atentar contra o mistério de Cristo’ (nº 389).

Enfim, desde a sua origem o homem foi chamado à santidade para conviver com o seu Criador. São Paulo exclama na carta aos efésios:

‘Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo (…) escolhendo-nos nele antes da criação do mundo para sermos santos é irrepreensíveis diante de seus olhos’ (Ef 1,3-4).

Antes da criação do mundo Deus já nos tinha amado e desejado, chama-nos à vida, para sermos, como Ele, santos. Por isso nos fez ‘à sua imagem e semelhança’ (Gen 1,26).

Santa Catarina de Sena ouviu de Deus: ‘Criara o homem à minha imagem e semelhança para que alcançasse a vida eterna, participasse do Meu ser, experimentasse a Minha suma, extrema e doce bondade’ (Diálogos).

Embora o pecado original tenha quebrado a ‘santidade original’ e o ‘estado de justiça’ do homem e da mulher, Deus, nos seus desígnios eternos, já tinha providenciado a nossa restauração em Jesus Cristo, Homem – Deus.

A partir da queda no Paraíso e do rompimento da Aliança original com o homem, Deus continuou a chamar a humanidade ao seu convívio. Fez com ela novas Alianças até a ‘Nova e Eterna’ Aliança selada com o sangue de Jesus. A primeira Aliança foi feita com Noé e sua família (Gen 6 a 9), pois Noé preservou a sua santidade no meio da corrupção do seu povo. A narração diz que ‘Ele encontrou graça aos olhos do Senhor’ (Gen 6,8) e que ‘Ele andava com Deus’ (9).

São os sinais da sua santidade. Com ele Deus celebrou uma Aliança: ‘Eu vou fazer uma aliança convosco e com vossa posteridade …’ (Gen 9,9). O sinal desta Aliança foi o Arco-Iris. ‘Ponho o meu arco nas nuvens, para que ele seja sinal da aliança entre Mim e a terra’ (Gen 9,13).

Mais adiante, cerca de 1800 anos antes de Cristo, Deus confirma essa Aliança com Abraão, fazendo nascer dele um povo. É interessante notar que Deus exige de Abraão a santidade.

‘O Senhor apareceu-lhe e disse-lhe: Eu sou o Deus Todo-Poderoso. Anda em minha presença e sê perfeito; quero fazer aliança contigo …’ (Gen 17,1-2). Deus exige que Abraão ‘ande em sua presença e seja perfeito’. É o chamado à santidade que se renova para quem vai ‘andar na presença de Deus’. O sinal dessa aliança foi a circuncisão. ‘Todo o varão entre vós será circuncidado. Cortareis a carne de vosso prepúcio, e isso será o sinal de minha aliança entre mim e vós’ (Gen 17, 10-12).
E Deus continua a buscar e renovar essa Aliança em Moisés, não mais com uma família (Noé), ou apenas com um homem que seria Pai de um povo, mas agora com o seu Povo, já constituído e conduzido por Moisés.

No deserto do Sinai, no alto do monte Horeb, Deus renova a sua Aliança com Moisés. ‘Agora pois, se obedecerdes a minha voz, e guardardes minha aliança, vós sereis o meu povo particular entre todos os povos. Toda a terra é minha, mas vós me sereis um reino de sacerdotes e uma nação consagrada’ (Ex 19,5-6). O sinal dessa Aliança são as tábuas da lei que contém os dez mandamentos, as ‘dez palavras’ (decálogo) (Ex 31,18), os quais, observados pelo povo, o conduziria à santidade necessária para conviver com Deus. No exato cumprimento dos mandamentos Deus apartava o seu povo dos pagãos e dos seus deuses:

‘Não farás aliança nem com eles nem com os seus deuses. Eles não residirão na tua terra, para que não te façam pecar contra mim, e que, prestando um culto aos seus deuses, não sejas preso no laço’ (Ex 23, 32-33).
Finalmente esta Aliança é renovada, plenificada e tornada eterna em Jesus Cristo e a Igreja. ‘Este cálice é a nova Aliança em Meu sangue, que é derramado por vós …'(Lc 22,20).
A Igreja é o povo de Deus, a nova Família de Deus, chamada à comunhão com Deus desde Noé, Abraão, Moisés, Jacó (Israel) até Jesus Cristo. Os Doze Apóstolos são os sucessores das Doze tribos de Israel(cf Ap 21,14). Esta foi a forma que Deus quis para trazer a humanidade de novo ao seu convívio, para a qual ela foi criada. Em Cristo, o Pai redimiu a humanidade, resgatou-a da morte e do pecado, para que ela pudesse voltar ao Paraíso perdido. É o que nos ensina São Paulo em muitas passagens de suas cartas:

‘É nesse Filho, pelo seu sangue, que temos a redenção, a remissão dos pecados’ (Ef 1,7). ‘Ele nos arrancou do poder das trevas e nos transferiu para o reino do seu Filho muito amado, no qual temos a redenção a remissão dos pecados’ (Col 1,13). ‘…restituiu a paz ao preço do sangue de sua cruz’ (Col 1,20).

Em Cristo, Deus resgatou a humanidade e nos chama de novo à santidade. ‘Se, portanto, ressuscitastes com Cristo [pelo batismo] buscai as coisas lá do alto onde Cristo está sentado à direita de Deus’ (Col 3,1). Em Cristo podemos agora buscar a santidade para a qual fomos criados. ‘Se alguém, for de Cristo, é uma nova criatura. Passou o que era velho; eis que tudo se fez novo’ (2Cor 5,17).

Para que não nos perdéssemos sem Deus, Ele foi ao extremo do sacrifício do seu Filho Unigênito. ‘Deus amou de tal forma o mundo que deu o seu Filho Único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha vida eterna’ (Jo 3,16).

Fomos criados por Deus e para Deus, e a Ele pertencemos; por isso, somos chamados à santidade. O salmista canta essa verdade essencial: ‘Ele é nosso Deus; nós somos o povo de que ele é o pastor, As ovelhas que as suas mãos conduzem’ (Sl 94,7).

‘Sabei que o Senhor é Deus: Somos o seu povo e as ovelhas de seu rebanho’ (Sl 99,3).

Essa pertença a Deus é que nos obriga acima de tudo a buscarmos como meta da nossa vida a santidade, que é a marca de Deus, três vezes Santo.

O Papa João Paulo II, que é um pregador incansável da santidade, disse certa vez:
‘Não tenhais medo da santidade, porque nela consiste a plena realização de toda a autêntica aspiração do coração humano’ (LR,N.17,7/4/96). ‘Entre as maravilhas que Deus realiza continuamente, reveste singular importância a obra maravilhosa da santidade, porque ela se refere diretamente à pessoa humana’.

E o Papa resume tudo dizendo que:

‘A santidade é a plenitude da vida’ (LR, N.20,18/5/96).

Com a mesma ênfase, São Paulo afirma para os coríntios que não nos pertencemos, porque fomos comprados por um alto preço que é o sangue de Cristo (cf. 1 Cor 6,19). Aos romanos o Apóstolo diz: ‘Nenhum de vós vive para si, e ninguém morre para si. Se vivemos, vivemos para o Senhor; se morremos, morremos para o Senhor. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor.’ (Rom 14,7).


Felipe Aquino

Professor Felipe Aquino é viuvo, pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova. Página do professor: www.cleofas.com.br e Twitter: @pfelipeaquino