Índios, tutela ou dependência?

Em fins de fevereiro, depois de visitar as aldeias indígenas situadas no território da Diocese de Dourados – com uma população de aproximadamente 35.000 pessoas –, José Aylwin, assessor do “Grupo de Trabalho Internacional para Assuntos Indígenas”, com sede na Dinamarca, declarou que «o regime de tutela imposto aos índios brasileiros é uma prática sem qualquer fundamento legal, que fere os tratados internacionais sobre o assunto».
Ele se referia ao “Estatuto do Índio”, promulgado em 1973, que manteve em vigor um princípio estabelecido pelo Código Civil Brasileiro de 1916, onde se declara que os índios são «relativamente capazes», devendo, por isso, estar sujeitos a um órgão estatal até «se integrarem à comunhão nacional».

Pelo Código de 1916, «todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil», exceção feita para algumas classes, como os loucos, os menores de 16 anos e «os silvícolas». De acordo com a mentalidade então vigente, os índios precisavam ser tutelados porque incapazes de assumir suas responsabilidades.
O “Estatuto do Índio”, se não trouxe novidades em relação à praxe anterior, contudo, deu início a profundas transformações na vida dos povos indígenas. Suas relações com o mundo “de fora” se tornaram mais freqüentes, fazendo-se presentes em eventos nacionais e inter-nacionais na defesa de seus direitos. Não são poucos os índios que ocupam cargos de responsabilidade na sociedade civil, depois de freqüentarem cursos universitários.

Em muitas comunidades indígenas, a maior parte dos lares tem televisão e rádio, fruto de uma globalização que massifica as pessoas e substitui os valores da cultura tradicional pelos vícios que afligem a sociedade atual. De uns anos para cá, grande parte das mazelas inventadas pelos brancos entraram maciçamente nas aldeias indígenas. Em várias delas, a prostituição infantil, a violência doméstica, o alcoolismo, as drogas, a corrupção, a opressão exercida por algumas lideranças, etc., não são inferiores às que se verificam entre os não-índios.

Na verdade, o que os índios precisam não é de uma tutela que os mantém alheios ao desenvolvimento e os impede de serem protagonistas de sua história, mas o acesso às mesmas oportunidades que se oferecem aos demais cidadãos brasileiros. As cestas básicas – a não ser em casos de doença e velhice – perpetuam uma dependência que os humilha e impede de evoluir. Por sua vez, os confrontos e disputas – às vezes, até com mortes – suscitados pelas “retomadas” de terras de que precisam para sua sobrevivência, exigem do governo federal uma resposta que estanque, de uma vez por todas, situações dolorosas e injustas, que mantêm em margens opostas, como eternos inimigos, índios e “brancos”.

Como as demais raças e etnias, eles devem descobrir e percorrer um caminho que os liberte e realize. Não pretendem – pelo menos os mais jovens – voltar aos assim ditos “bons tempos antigos”. Sabem que o mundo caminha e que ninguém consegue impedir a marcha da história. Como quaisquer outros cidadãos brasileiros, estão sujeitos a deveres e direitos iguais.
Mas, para tanto, será preciso que a sociedade brasileira lhes pague a enorme dívida que contraiu ao espoliá-los e marginalizá-los durante tanto tempo. Graças a Deus, desde que cheguei a Dourados, em 2001, percebi que são inúmeras as pessoas e as organizações públicas e particulares que assumem a sua defesa e promoção. Tomo, como exemplo, a Prefeitura Municipal de Dourados, por ser a que mais conheço. Nestes últimos anos, com ou sem ajuda dos governos federal e estadual, ela investiu pesado nas duas aldeias que formam a Reserva Indígena: construiu 58 salas de aula, com cerca de 3.000 alunos matriculados; proporcionou energia elétrica a 1.110 residências; edificou 400 casas populares e iniciou outras 80; favoreceu com bolsa-família 2.300 famílias; perfurou cinco poços artesianos e levantou sete reservatórios, beneficiando 2.243 famílias; implantou 40 hortas comunitárias e 34 açudes para a criação de peixes; inaugurou a Casa de Saúde Indígena e o Posto de Saúde da Família, reduzindo de 82% a mortalidade infantil. Sei também de uma universidade local que conseguiu bolsas de estudo para 70 índios.

Tudo isso está a dizer que o Brasil será realmente “um país de todos e para todos” à medida que se respeite não apenas a cultura de cada pessoa, mas também – dada a sua importância na formação da pessoa humana – a sua religião, como adverte José Aylwin: «A proibição de funcionamento de igrejas nas aldeias é uma prática ilegal, que viola abertamente os princípios da cidadania».