Como pode um fiel cristão na sociedade, que atua seja na opinião pública ou seja nos poderes constituídos, exigir que seus ‘princípios de fé’ sejam assimilados, até de maneira obrigatória, por meio de leis, de decretos e de decisões judiciais? Além disso, o problema se complica diante do fato de que cristãos — seja de denominações diferentes (católicos, ortodoxos, evangélicos) ou seja dentro da mesma denominação —, várias vezes divergem entre eles sobre tais questionamentos.
Essa problemática pode ser aplicada particularmente aos questionamentos da bioética, relativos às temáticas da intervenção artificial na reprodução humana (inseminação artificial, bebê de proveta, “mãe de aluguel”), do controle da natalidade, do aborto, da eutanásia; ou a outros assuntos, como o do divórcio, da propriedade privada etc.
A esse respeito há um texto muito interessante, escrito por Joseph Ratzinger, poucos meses antes dele ser eleito Papa. A citação é longa, mas vale a pena apresentá-la:
“O católico não quer e não pode impor, através da lei, hierarquias de valor que somente na fé podem ser reconhecidas e realizadas. Pode apenas exigir o que pertence às bases da humanidade que tem como fundamento a razão: e que, por isso, são essenciais para a construção de um bom ordenamento jurídico.
Existe o patrimônio específico da fé (Trindade, Divindade de Cristo, Sacramentos etc.); mas existem também conhecimentos a cujas evidências a fé dá a sua contribuição: e que, depois, são reconhecidas como racionais e, por isso, implicam uma responsabilidade frente aos outros. Pense-se, a esse respeito, no reconhecimento da dignidade de cada pessoa humana, que foi historicamente possível só com a contribuição da visão religiosa que reconhece cada ser humano criado à imagem e semelhança de Deus e destinatário da salvação de Cristo.
O fiel cristão, que recebeu uma ajuda por sua razão, deve empenhar-se em favor da razão, em favor daquilo que é racional. Diante da razão doente ou adormecida, torna-se um dever perante de toda a comunidade humana. Naturalmente o cristão sabe que deve respeitar a liberdade dos outros e que a sua única arma é exatamente a racionalidade dos argumentos que propõe diante das discussões políticas e na luta para a formação da opinião pública.”
O cristão fiel e o diálogo com argumentos de razão
Fica, pois, clara a necessidade, por parte do cristão fiel, de dialogar com argumentos de razão e, ao mesmo tempo, com respeito para com aqueles que têm opinião diferente. E, no caso que prevaleça um tipo de lei contrária às próprias convicções, o mesmo autor fala do recurso à objeção de consciência, nestes termos: “O legislador, a partir do princípio comumente reconhecido da liberdade de consciência, deveria conceder o direito à objeção de consciência: a Igreja não quer impor aos outros o que não entendem, mas espera, por parte deles, pelo menos, o respeito para a consciência daqueles que deixam guiar a sua razão pela fé cristã”.
Pense-se, neste sentido, em várias legislações que, apesar de serem abortistas, reconhecem que os médicos não sejam obrigados a praticar o aborto, pois ‘fazem objeção’ a tal comportamento.
O cristão que atua em vários áreas na sociedade
Em suma, o fiel cristão que atua na política, no campo científico, ético e jurídico, procura, por um lado, argumentos racionais que justifiquem uma determinada formulação da lei. Por outro, quando alguns valores éticos não são reconhecidos, do ponto de vida legal, reclamam seu direito à objeção de consciência e continuam sensibilizando a sociedade para que, aos poucos, aceite de incorporar na sua legislação, elementos mais respeitosos do princípio da dignidade da pessoa humana.
Não se pode esquecer, a título de exemplo, que, por séculos, a ‘escravidão dos negros’ foi ‘lei’; e que, aos poucos, se chegou com uma maior sensibilização da sociedade, a abolição desta lei.
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Os desafios na atualidade
Defender o respeito à vida humana, desde a concepção até a morte natural, a necessidade da técnica não acabar com a ética e da legislação estar sempre a serviço da justiça, atualmente é um desafio. Frequentemente, a mídia considera tais posicionamentos como ‘conservadores e ultrapassados’. Além disso, obriga os cristãos a aprender a dialogar com argumentos racionais nesta sociedade pluralista.
Recentes encíclicas dos últimos papas, a começar pela Pacem in terris (1963) de S. João XXIII até a Fratelli tutti do Papa Francisco (2020), são dirigidas não apenas para os católicos para também para ‘todos os homens de boa vontade’, num diálogo entre a fé e a razão. Vamos seguir esses bons exemplos!