Certa vez, uma pessoa procurou tratamento, porque era depressiva. O doutor atendia aquela pessoa e, a cada semana, em vez de melhorar, ela piorava. Um dia, o doutor observou o que ela lia na sala de espera antes do atendimento. O livro falava a respeito de como se sentia uma pessoa deprimida. Conversando sobre isso, o doutor percebeu o quanto aquela pessoa ia assimilando, a cada semana, as características expressas naquele livro, e o quanto isso era importante para ela. Ser deprimida não era um problema de saúde, mas uma referência de identificação. Foi necessário levar aquela pessoa a identificar-se em tudo que vivia, que compunha sua identidade, mostrando, então, que ela não precisava de um rótulo para ser reconhecida, muito menos um rótulo como aquele. A realidade desse caso, que talvez pareça a muitos um fato isolado e distante, pode ser algo mais próximo do nosso cotidiano do que imaginamos. Frequentemente, apoiamo-nos em rótulos ou encontramos pessoas que o fazem.
Muitas vezes, passamos a nos referir às pessoas pela descrição de sua profissão, seu estado de origem, uma determinada característica física ou emocional em particular. Nesses casos, até que não há problema em agir assim como uma forma de identificar aquela pessoa. O problema está no fato de que, muitas vezes, naquele rótulo, há toda uma carga de preconceitos (às vezes, somos nós que os trazemos; outras vezes, é a própria pessoa que os traz) que nos impedem de conhecer, verdadeiramente, a pessoa, que não nos permite ver a mudança e o crescimento dela ou, simplesmente, impede que o diálogo e a amizade se aprofundem.
Os rótulos podem nos afetar de diversas maneiras
“Você sabe com quem está falando?” “Faça o que eu digo, pois sou seu pai e estou dizendo”. O autoritarismo com que muitas figuras de autoridade exercem sua função é caracterizado por uma postura de dar ordens e esconder-se por trás do rótulo de sua função. Elas perdem tempo, pois não aproveitam as ordens que dão como oportunidades de formação e crescimento. Muitas vezes, encontra-se, no rótulo ou no título, uma referência de autovalorização, uma forma de garantir privilégios, os quais acabam por tornar a pessoa superficial.
É muito cômodo encontrar um rótulo que defina alguém ou que nos defina. Rótulos que nos livram de questionamentos ou nos privam de atenção. Nessa comodidade, perdemo-nos, pois nos privamos de conhecer (a nós mesmos e ao outro). Privamo-nos também de mudar (as nossas impressões sobre nós mesmos e sobre o outro). Mais ainda, deixamos de crescer (crescimento pessoal e criar condições para o crescimento do outro).
Nem sempre temos a noção do dano que é causado a alguém que se vê confinado a uma rotulação social: preguiçoso, displicente, egoísta, depressivo, tímido, colérico, melancólico etc. Todos os rótulos que tornam a vida muito mais pesada e sem perspectivas; em alguns causa revolta, e em outros, acomodação ou desesperança de uma vida diferente. E mesmo outros rótulos como: “alegre”, “otimista”, “o melhor”, “o chefe” retratam realidades relativamente agradáveis, mas que terminam por se tornar peso, já que o alegre também chora e se entristece; o otimista hesita e se desilude; aquele que é o melhor no que faz, muitas vezes, comete erros e precisa de correção; e o chefe, em algum momento, terá de se subordinar até àquele que um dia comandou.
Podemos estar representando diversos papéis
O importante não é pensar nos méritos do outro ou na necessidade de termos algum reconhecimento (afinal, o que se faz com esse reconhecimento?). Também não importa apoiar-se em um estado particular que alguém viva, seja emocionalmente ou mesmo um estado definido por uma função na sociedade em que está inserido, ou ainda pelo lugar de onde viemos ou pelo tipo físico. O importante é estar sempre atento ao que a pessoa faz, às suas mudanças. O importante é conhecer sua essência e procurar olhar as pessoas sempre com o olhar de quem a vê pela primeira vez, sem nenhuma referência, deixando para traz os preconceitos, os rótulos, as desconfianças, os medos e a inferioridade.
Todos esses rótulos descrevem funções, papéis que assumimos, mas que não têm valor em si. Na verdade, eles precisam ter um sentido, pois somente com seu sentido descoberto é que alguém pode crescer com aquilo que lhe é dado viver.
Leia mais:
::Existe uma saída para a obsessão?
::O que eu preciso para ser feliz?
::Adoeço meus relacionamentos com críticas e rótulos?
::Como encontrar um tempo para o descanso digital?
A pessoa humana é muito mais do que a ideia construída por uma realidade
Quanto àquela pessoa da nossa história, ela encontrou em sua história, em sua formação, muitas figuras simplesmente lhe dando ordens, escondidas sob o rótulo da autoridade. Muitas vezes, ela foi simplesmente “classificada” pelas pessoas que, na verdade, deveriam tê-la conhecido, tê-la ouvido, conversado com ela. Com o tempo, conformou-se em ser “depressiva” e buscou construir sua identidade pelo que diziam.
No entanto, ela era muito mais do que uma “palavra” ou uma ideia construída por uma realidade. Ela é alguém que, a cada dia, se renova, refaz-se, aprende, muda. Assim como ela, muitos de nós e muitos daqueles que são próximos a nós precisam de mudanças, conversões. Isso só acontecerá se nos propusermos a olhar além, a buscar o essencial; se entendermos que a realidade não se confina em ideias que concebemos a respeito da vida ou das pessoas, ainda que construídas a partir de uma realidade, pois a realidade se atualiza todo dia.
Cláudia May Philippi
Psicóloga graduada pelo Centro Universitário de Brasília