Costumamos dizer que a vida às vezes nos prega peças. Um desses casos são aquelas ocasiões inesperadas que despertam em nós uma espécie de monstro interior que preferiríamos que permanecesse dormindo. Aquele senhor aparentemente calmo e comedido que bebeu demais na confraternização do condomínio e escandalizou a todos fazendo um discurso no qual dizia a sua opinião mais sincera (e extremamente negativa) a respeito de seus vizinhos, do síndico e até da mãe do síndico. Ou o pai que foi levar o filho pequeno para vacinar e aparentemente surtou porque imaginou que alguém furou a fila, dirigindo uma ira desproporcional a outro pai que ali estava com um bebê nos braços. Não faltam exemplos, e em tempo de vídeos virais, todos nós já devemos ter visto cenas como essas circulando em nossos celulares, a maioria delas de pessoas comuns que tiveram reações imprevisivelmente ruins a eventos aparentemente simples (Nem sempre essas reações se resumem à ira, frise-se. Em alguns casos é uma mentira grave “contada no susto”, uma trapaça numa competição familiar que nem valia nada, só para não passar pelo vexame da derrota, ou mesmo um troco que veio a mais e você, num impulso, não devolveu). Normalmente, a pessoa se sente afogada na vergonha quando o episódio passa e tem grande dificuldade de encarar aqueles que presenciaram o “espetáculo”, mas uma dificuldade ainda maior de encarar a si mesmo, de aceitar que aquele monstro saiu de dentro de si.
Você tem medo de agir assim?
Dorian Gray, um dos mais famosos personagens da literatura, permanecia belo e jovem, com rosto angelical e puro, apesar de se deixar levar cada vez mais pelos vícios. Um dia, movido pela curiosidade, decidiu olhar o quadro com a sua imagem, justamente o quadro que ele tanto invejara pela beleza e pelo qual vendera a sua alma com o juramento imprudente de que daria qualquer coisa para permanecer eternamente belo e jovem como aquela imagem no quadro. Ele ficou então sumamente escandalizado quando viu que o quadro havia envelhecido e não ele, e que o quadro assumira as feições perversas e eivadas de vícios, enquanto ele mantinha a máscara de bondade que encantava as pessoas ao seu redor. O quadro claramente simbolizava o seu interior, sujo e mau, mas ele não podia suportar essa dura verdade, por isso escondeu a obra de arte onde nem mesmo ele fosse capaz de ver. É o que muitos de nós fazemos quando nos deparamos com nossas misérias. Negamos toda a situação, como se isso apagasse o fato corrido: “Isso nunca me aconteceu antes!” ou “Eu sou incapaz de fazer isso, foi a bebida, a situação tal que eu estou vivendo, um surto etc., porque eu sei que sou incapaz de fazer mal a uma mosca”. Aqui, preciso fazer algumas correções: sim, você é capaz de fazer isso. Sim, você é capaz de fazer mal a uma mosca. Não, não foi a bebida, não foi a tensão ou o nervosismo. Essas coisas apenas tornaram mais difícil controlar o que já estava dentro de você: o homem velho, dominado pelo pecado, inclinado para o mal, avesso ao bem. Essas “peças” que a vida nos prega são ocasiões privilegiadas de conversão e não deveríamos fingir que elas não aconteceram, não deveríamos ser covardes como Dorian Gray e esconder o quadro do nosso interior, mas refletir bastante sobre nossa conduta, à luz do Espírito Santo. Por meio desses momentos catárticos, entramos em contato direto com as nossas misérias, sem filtros, sem máscaras. Podemos ver de que barro somos feitos e o que somos realmente quando agimos guiados apenas por nossos instintos.
Há uma semana, envolvi-me num acidente de carro. Eu, minha esposa, dois dos meus filhos e um sobrinho voltávamos à noite do cinema em uma cidade próxima. Estávamos numa rodovia estadual e quando passávamos pelos quebra-molas, na área de um posto de gasolina, um motociclista bêbado, sem capacete e com o farol da moto desligado perdeu o controle e cruzou a pista diretamente na nossa direção, batendo frontalmente no nosso carro. Como eu havia passado por um quebra-molas e estava me aproximando de outro, o carro vinha bem devagar e o impacto não foi tão grande. Minha família e eu não nos machucamos, mas o motociclista fraturou a perna direita. Desci com a minha esposa do carro, vimos que o rapaz estava consciente, não estava sangrando, acalmamos as crianças e eu liguei para o SAMU e para a polícia. Ficamos aguardando e enquanto isso apareceram muitas pessoas que moravam ali na área, curiosas com o acidente. Após alguns minutos, o efeito do choque deve ter passado, assim como o torpor da bebida, e o motociclista começou a reclamar de dor. Mais do que reclamar, ele começou a gritar a plenos pulmões, intercalando os gritos com palavrões. O SAMU já tinha sido chamado há cerca de meia hora e não chegava, e o rapaz no chão, sem poder ser removido, por conta da fratura, gritando, sofrendo em agonia. Minha esposa estava inquieta, perturbada com o sofrimento do rapaz. A todo instante ela vinha me perguntar da ambulância que não chegava, enquanto rezava silenciosamente por ele.
É isso mesmo, produção?
Foi então que me dei conta de algo que acontecia em meu interior, ou, melhor dizendo, não acontecia: eu não sentia compaixão ou pena por aquele rapaz acidentado. Na verdade, eu não sentia nada. No melhor estilo “é isso mesmo, produção?”, eu me questionei interiormente a respeito disso. “Não é verdade”, eu dizia a mim mesmo, “eu não posso ser tão insensível”. Não é que eu estivesse com raiva dele e por isso não sentia compaixão. Não, não era esse o caso. Eu simplesmente não conseguia me compadecer de uma pessoa que estava há meia hora agonizando de dor no chão com uma perna fraturada. Compartilhei essa descoberta com a minha esposa e continuei refletindo. Pedi a Deus a graça de sentir compaixão dele, esforcei-me para isso, mas era algo que vinha do intelecto, não do coração. Algumas pessoas vinham puxar conversa comigo, por exemplo, dizendo que aquele bêbado desgraçado só complicava a vida de gente de bem, que não tinha nada a ver com a cachaça dele, como eu. Eu dizia que não era bem assim, que o coitado estava sofrendo muito mais do que eu e o que nós passamos ali era só um pequeno transtorno perto do que ele iria enfrentar até se recuperar do acidente. Eu me esforçava vivamente para manifestar compaixão, mas me sentia como Arnold Schwarzenegger em O Exterminador do Futuro 2, quando o garoto John Connor tenta ensiná-lo a ser descolado, a falar gírias e dizer frases de efeito, mas tudo que o Exterminador fala é artificial, mecânico, sem o calor próprio de quem tira as coisas do coração.
Passei dias e dias refletindo sobre isso e parte de mim queria negar tudo aquilo, buscando argumentos e razões que explicassem a minha “aparente” insensibilidade, como algum possível choque diante do acidente, mas eu sabia que isso não era verdade. Foram dias de um longo diálogo com Deus e comigo mesmo, e, ainda assustado, assumi que aquela minha reação me dizia algo importante sobre mim mesmo, mostrava quem eu sou. E quem eu sou? Um homem com quase vinte e cinco anos de vivência intensa na Igreja, catorze deles como membro da Canção Nova. Um homem que busca a santidade de vida, que prega essa santidade, que participa da missa diariamente, confessa-se com regularidade, esforça-se para permanecer na Graça de Deus. Um homem que busca ser em tudo guiado pelo Espírito Santo, que reflete diariamente sobre a Cruz de Cristo e a cruz nossa de cada dia… Ainda assim, um homem que depois de tudo isso tem tão pouco amor no coração que foi incapaz de se compadecer de uma pessoa acidentada no chão, gritando de dor com os ossos quebrados. Esse sou eu. Sem enfeites, sem máscaras, sem exageros nem autocondescendência, esse sou eu. Após um quarto de década de vida na Igreja, eu já aprendi sobre virtudes e sobre vida dos santos, sobre graça santificante e sobre a história da Igreja, sobre tantas coisas, mas ainda não aprendi a ver Cristo no próximo, amando-o. Essa descoberta me desanimou, me fez ter a impressão de que perdi meu tempo? Não. Pelo contrário, o pensamento que me veio foi: se andando com Cristo esses anos todos eu ainda sou assim, imagine quem eu seria se não fosse a Graça de Deus agindo sobre mim.
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Fonte de conversão
Tirei desse episódio duas grandes conclusões, que posso chamar de dois frutos espirituais para a minha conversão. “Onde estaria eu se não fosse o seu amor, Senhor?”, parafraseando a bela canção, é o primeiro. Deus tem feito uma obra belíssima em mim e se não fosse isso, que tipo de coração ainda mais duro e cruel eu não teria! Entra então o segundo fruto: baixe a sua bola, Leonardo. Você não é isso tudo que às vezes tenta se convencer que é. O que quer que exista de bom dentro de você vem exclusivamente de Deus. Os talentos, as boas inspirações, os gestos, os sentimentos, tudo vem de Deus. Quando você age movido pelos seus próprios impulsos, acontece isso que você
experimentou: miséria, desamor, falta de compaixão, insensibilidade… Por isso, esvazie-se de si mesmo como o próprio Cristo esvaziou-se. Ele, que é Deus, não fez questão disso, mas aniquilou-se a si mesmo, viveu a obediência até o último instante e humilhou-se até a morte de Cruz. Esvazie-se das suas pretensões de bondade, das suas certezas, das suas vaidades. Quando tudo estiver vazio dentro de você, sobrarão as misérias, a fraqueza, a vulnerabilidade. Então você ouvirá de Deus o que São Paulo ouviu: “Basta-te minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a minha força”.