Proibido a 10 de abril de 1946 pelo Decreto Lei nº 9225 do Presidente Dutra, o jogo de azar, periodicamente, volta à cena. Propõe-se sua oficialização sempre com os mesmos argumentos enganosos, como se a liberalização trouxesse consigo a moralização.
Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei autorizando a União, aos Estados e Municípios a administrar jogos de azar, diretamente ou repassar o negócio a terceiros, mediante licitação. A justificativa alega a situação existente no país nessa matéria e propõe, como solução, transformar a Lei de Contravenções Penais de 1941 em autorização da prática dos jogos de azar, quando explorados pelos governos. Tudo pode parecer inocente. Ledo engano. Aliás o título da matéria na Imprensa não deixa dúvidas: Comissão do Senado legaliza jogos de azar.
Respeitável figura da magistratura carioca, em matéria divulgada a 27 de junho último, a propósito desse projeto de lei, assim se expressa: Essa é a porta aberta para lavar o dinheiro de drogas, seqüestros, tráfico de armas, enfim as atividades do crime organizado. E no mesmo jornal há um elucidativo parecer de um criminalista: Acho essa idéia (de descriminalizar e ao mesmo tempo permitir os jogos de azar) um contra-senso do legislador brasileiro. Na prática, vai privilegiar o Estado que poderá explorar mais esse negócio direta ou indiretamente (por licitação). Para quem sabe da força do lobby em favor da legalização do jogo de azar, não causa surpresa mais essa tentativa que, em apenas três meses, chegou ao final de sua tramitação no Senado.
Há três décadas que a mídia, semanalmente, abre espaço para mim. Em jornais, emissoras de TV e de rádio abordo temas do momento à luz do Evangelho. Entre eles, tem ocupado espaço a jogatina, sob diversos aspectos. Ao tomar conhecimento de nova tentativa em prol dessa inglória causa, pedi à assessoria que me fez chegar às mãos material sobre o assunto, já divulgado nesse longo período. Encontrei o parecer de Rui Barbosa sobre essa praga, que conserva toda a sua atualidade. Diz ele em sua célebre catilinária sobre o assunto: de todas as desgraças que penetram no homem pela algibeira e arruínam o caráter pela fortuna, a mais grave, sem dúvida, é essa: o jogo.
Sem perder a esperança e confiança nos homens de bem, faço algumas ponderações à luz da atual situação nacional. O país atravessa um momento difícil. Nós nos acostumamos, é certo, a ouvir vaticínios sombrios, mas sempre o Brasil tem vencido as crises no decorrer da sua história. Contudo, isso não diminui o dever de vigilância e a obrigação de lutar pelo bem-estar de toda a nação. O momento presente se caracteriza pela corrupção, decadência moral, enfraquecimento da família, violência, entre outros males. Parcela vital na responsabilidade pela recuperação do organismo enfermo cabe ao Congresso Nacional. Este, ao elaborar sábias e oportunas leis, pode realmente conduzir o país a um caminho que possibilite alcançar maior prosperidade e bem-estar. Esse dever está alicerçado no valor moral de sua atividade.
Essas considerações me vêm ao constatar que o Senado encaminhou rapidamente uma lei que legaliza o jogo de azar. Serve de cobertura a transformação da contravenção penal em crime; mas este é absolvido, tão logo o Estado o administre diretamente ou por intermédio de terceiros. Estranho, o crime deixa de existir quando o Estado o assume. A justificativa é o completo comprometimento e contaminação do aparelhamento da administração pública, notadamente de seu braço repressivo policial, como também dos quadros políticos que abastecem os corredores do poder do nosso país. Seguindo esse raciocínio o passo seguinte poderá ser a liberação das drogas, comercializada pelo governo ou ainda Deus deve suprimir os 10 Mandamentos, pois passados tantos milênios de sua promulgação, no Monte Sinai, continuam a ser desrespeitados. Esse raciocínio, aceito pelo Congresso, contribui para a desmoralização, quando o dever de seus integrantes é, evidentemente, o oposto. Admiro a persistência, digna de melhor causa, das repetidas tentativas em favor da legalização do jogo de azar. Até agora, têm sido frustradas pelo bom senso. A aprovação desse projeto de lei terá efeito negativo nos esforços para preservar o bom nome do Congresso ou restaurá-lo onde se fizer necessário. De modo particular, no momento atual, uma iniciativa do Poder Legislativo em favor da jogatina, por mais hábeis que forem os subterfúgios, redundará em algo prejudicial à reputação da Casa que deve elaborar leis que corrijam os males existentes. Todos nós, a partir dos senadores e deputados, temos o dever de preservar ou restaurar o bom nome das instituições basilares desta nação. O mal não está tanto na constatação de sua existência como na incapacidade de a ele reagir.
Concluo com o que escrevi na imprensa do Rio de Janeiro em 20 de março de 1987: Os graves malefícios resultantes da jogatina clandestina, como da prostituição e das drogas, são menores, se permanecerem na ilegalidade. Pelo menos a contaminação é dificultada e, ainda assim sofre a barreira de uma rejeição oficial. No sentido contrário tudo se nivela: senhores de bem e comerciantes de tóxicos ou vendedores da sorte e do sexo serão equiparados perante a Lei.
Respeito os que vivem no erro, mas não os que buscam conceder às deformações morais o direito de cidadania. Eu não me envergonho de tratar com os que vivem no pecado. Acuso os que tentam dar ao vício o nome de virtude. O que escrevi em 1987 é válido no ano 2002, diante desse projeto de propor dar foros legais aos jogos de azar. Todas as vezes que se dá um status ao proibido, nasce e cresce o estímulo aos seus efeitos negativos.
Cardeal Eugênio de Araújo Sales
Arcebispo Emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro