Igreja

São Calisto I: um legado de misericórdia e esperança

São Calisto I: de escravo a Papa – uma jornada de fé e coragem

A história de São Calisto I é um testemunho de fé e compromisso com a misericórdia, mesmo diante da adversidade. Tendo suas origens na Roma no século II, Calisto viveu uma vida marcada por dificuldades e superação, ascendendo de escravo a líder da Igreja Católica em um período de intensa perseguição.

As origens humildes e a escravidão

Nascido em meio à pobreza na Roma do século II, Calisto teve seus primeiros anos sob o jugo da escravidão. Essa experiência, embora marcante, não determinou seu futuro. Ao conquistar a liberdade, enfrentou dificuldades e reveses profissionais, culminando em uma dívida que o obrigou a fugir para Portugal. Capturado, foi condenado a trabalhos forçados nas minas da Sardenha. E foi nesse contexto improvável, entre correntes e cansaço, que a luz do Evangelho alcançou seu coração. O contato com cristãos condenados, que suportavam o sofrimento com devoção inabalável em Cristo, despertou em Calisto uma profunda admiração e o levou à conversão. Nas minas da Sardenha, entre o desespero e a grilhões, encontrou a liberdade verdadeira em Cristo, iniciando sua jornada para se tornar um líder da Igreja.

De escravo a servo zeloso da Igreja

Após cumprir sua pena nas minas da Sardenha, Calisto retornou a Roma, não como um ex-escravo em busca de recomeço, mas sim como um homem imbuído de fé, pronto para servir à Igreja com a mesma devoção que testemunhara em seus irmãos de cárcere. Sua dedicação e zelo chamaram a atenção do Papa Zeferino, que reconheceu em Calisto um servo dedicado e capaz. Foi então nomeado diácono, recebendo a responsabilidade crucial de administrar as catacumbas – a rede de túneis subterrâneos que serviam como cemitério e espaço sagrado para os cristãos em tempos de perseguição. Calisto abraçou essa missão com afinco, expandindo e organizando as catacumbas da Via Ápia, criando não apenas um local de repouso digno para os mortos, mas também um refúgio para os vivos, onde a comunidade cristã podia se reunir em segurança para celebrar sua fé, longe dos olhos vigilantes de seus perseguidores. Dentre suas realizações, destaca-se a Cripta dos Papas, um espaço dedicado a abrigar os restos mortais dos líderes da Igreja, demonstrando a profunda reverência de Calisto pela história e tradição cristã.

Crédito: martinsvanags / GettyImages

Da eleição ao pontificado e o legado de misericórdia

Em 217 d.C., a dedicação e excelência do serviço de Calisto o conduziu a um novo desafio: a liderança da Igreja. Eleito Papa, sua ascensão não foi recebida com unanimidade. O passado como escravo e as marcas da origem na pobreza geraram controvérsias, alimentando a resistência de alguns setores da Igreja. Contudo, São Calisto I enfrentou a oposição com a mesma firmeza e compaixão que o guiaram até ali. Sua liderança distinguiu-se pela ênfase na misericórdia e no perdão, características intrínsecas à sua própria história de superação. Diante do debate sobre a reconciliação dos cristãos que negaram a fé para escapar das perseguições (os chamados “lapsi”), Calisto posicionou-se com coragem em defesa da clemência. “Todo pecado pode ser perdoado pela Igreja, cumpridas as devidas penitências”, proclamou, reafirmando o poder do perdão e da misericórdia divina. Essa postura, embora aplaudida por muitos, encontrou resistência em figuras como Hipólito, renomado teólogo que defendia uma visão mais rigorosa e intransigente em relação aos “lapsi”, gerando um dos primeiros grandes debates sobre a natureza do perdão e da reconciliação dentro da Igreja.

A perseguição, as catacumbas e o martírio

O papado de Calisto I, embora relativamente curto, estendendo-se por seis anos (217-222 d.C.), deixou marcas indeléveis na Igreja. Durante sua liderança, as catacumbas romanas, que ele próprio ajudara a expandir e organizar com tanto zelo, tornaram-se ainda mais vitais para a comunidade cristã. Sob o governo do imperador romano Heliogábalo, a perseguição aos cristãos, apesar de não sistemática como em outros períodos, ainda representava uma ameaça constante. As catacumbas, sob a administração de Calisto, serviam não apenas como cemitério, mas também como local de refúgio, culto e comunhão fraterna, protegendo os cristãos da vigilância e repressão do Império. No entanto, a dedicação de Calisto à fé e à sua comunidade não o tornaram imune à violência da perseguição. Em 222 d.C., durante o reinado de Maximino Trácio, que instaurou uma nova onda de perseguição violenta contra os cristãos, o antigo escravo que havia ascendido ao posto de Sumo Pontífice encontrou seu fim como mártir. Após ser preso e brutalmente espancado, foi jogado em um poço escuro e profundo, encontrando a morte e unindo-se à legião de cristãos que, antes dele, haviam sacrificado suas vidas em nome da fé. Seu martírio, ocorrido em 14 de outubro, data em que celebramos sua festa litúrgica, tornou-se um símbolo da resiliência e da força da Igreja nascente, que florescia mesmo sob a sombra da perseguição. As catacumbas que ele tanto protegeu e engrandeceu passaram a levar seu nome, tornando-se um monumento eterno à sua memória e ao seu legado de fé e resistência.

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Legado de sabedoria e fé na misericórdia

O legado de São Calisto, santo e mártir da Igreja, é, em especial, a defesa da Misericórdia de Deus e reconciliação contra o legalismo e a intransigência, reconhecendo a fragilidade e falibilidade humanas, natureza sempre carente da Misericórdia de Deus, recebendo de volta o lapsi, que, arrependidos, buscavam pela reconciliação. Essa defesa lhe custou grande oposição e questionamentos de sua autoridade e competência, entretanto, a providência divina dotou-o de sabedoria para saber lidar com as turbulências e perseguições de seu tempo. As catacumbas demonstram este legado de sabedoria, assim como expresso em Mateus 10,16: “Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas”. São Calisto soube reconhecer os perigos e assim construir um escape para muitos cristãos. As catacumbas, que em outro momentos eram simples destino para os restos mortais dos cristãos falecidos, agora se tornavam via de esperança para os perseguidos.

A vida e o legado de São Calisto I transcende seu tempo, um exemplo de fé, perseverança e compaixão. Sua trajetória demonstra que a graça divina pode transformar até mesmo as realidades mais adversas, e que a misericórdia e o perdão são pilares fundamentais da fé cristã.

 

Jonatas Passos é natural de Cruzeiro (SP), marido, pai e colaborador da Fundação João Paulo II. Formado em Tecnologia, Informática e História. Pós-Graduado em Jornalismo e História do Brasil, com extensão em História da Religião.