A Vida e a ação de Jesus mostram, claramente, que a salvação que Ele realiza em nome de Deus não é tirar-nos de nossa humanidade mas, antes, tirar-nos daquilo que nos impede de sermos humanos. É nesse sentido que podemos entender, por exemplos, os relatos evangélicos que narram as curas e os exorcismos operados por Jesus: são gestos salvadores que devolvem às pessoas a plena capacidade de humanidade.
Nesse sentido fica mais fácil entender que a salvação não é apenas conserto da natureza corrompida pelo pecado, mas muito mais que isso, ela é dom, acréscimo, dádiva, graça, excesso, abundância. Não se trata de refazer o que o humano foi, mas de dar realização plena às suas potencialidades, isto é, fazer com que o humano seja aquilo que é chamado a ser. Por isso, a salvação aponta muito mais para o futuro que para o passado, para o que podemos ser e seremos, muito mais que para o que fomos.
Na teologia e no pensamento moderno, insiste-se no fato de que o homem não tem uma alma e um corpo, mas é alma e corpo. E, na medida em que ambos são corpo e alma do homem, ele é uno: essa unidade deveria ser o aspecto principal. Somente a partir dela é possível a distinção desses dois aspectos ou dimensão, momentos, nunca partes, de seu ser. O homem é corpo, ou seja, existe no espaço e no tempo, é parte deste cosmos, encaminha-se para a morte; é alma transcende os condicionamentos deste mundo, é imortal, e, em última análise, tudo isso tem sentido porque o homem é ser para Deus, é relacionado radicalmente a Ele. Há no homem uma dimensão irredutível ao material e ao mundano, ontologicamente distinta da realidade corporal.
A fé cristã mantém esta concepção como algo a que não se pode renunciar, porque só assim pode ter sentido a concepção do homem criado à imagem de Deus, chamado à comunhão com Deus em Cristo e à conformidade com o ressuscitado.
É preciso uma nova compreensão antropológica que se baseie, inclusive, em Jesus de Nazaré que, para a nossa fé, é revelador do ser de Deus, mas também do ser humano. Com efeito, é Jesus que nos revela o que é humano, ou para dizer de outra maneira, o que significa ser humano neste mundo. A compreensão do ser da humanidade, neste sentido, não parte de minha experiência de humanidade, uma experiência fragmentada e incompleta, mas sim da vida de Jesus, o novo Adão, isto é, o fundador da nova humanidade e, por isso, revelador do ser humano.
Claro que a formulação antropológica da teologia deve levar em conta os avanços da ciência, sobretudo as chamadas ciências humanas, que ajudam a compreender o significado da humanidade. Hoje, existem múltiplas antropologias, isto é, formas de compreensão do significado do humano no mundo. A antropologia neoliberal, que afirma que o ser humano é o consumo, não é a única antropologia possível nos dias de hoje, e por isso pode ser questionada. Existem, também, as antropologias indígenas que afirmam que o ser humano se realiza na festa e na dança, e não no sucesso ou no consumo.
Mas o discurso antropológico da teologia não pode ser simplesmente funcionalista ou ideológico. Tem de ser teológico, o que significa partir da Revelação. É preciso colocar a questão antropológica aos pés de Jesus, e dele aprender o que significa a humanidade que partilhamos. Não posso escolher uma antropologia segundo minhas convicções ou vontades pessoais, mas sim ver qual ou quais antropologias resistem à critica de Jesus. Claro que as ciências humanas podem ajudar-nos a compreender o que Jesus nos revela sobre nossa humanidade, e assim auxiliar-nos a distinguir aquilo que constrói o humano daquilo que não o constrói. Mas o cristão não perde de vista que a Revelação, de Deus e do humano, vem de Jesus. Aqui, desnecessário dizê-lo, reside toda a importância da cristologia: o cruzamento da história de Deus com a história humana, indicando o caminho da salvação.