Neste ano, a Campanha da Fraternidade nos coloca diante dos Povos Indígenas. Tema vasto e complexo por suas dimensões históricas. E sobretudo incômodo, pela profunda revisão de nossos conceitos a respeito dos Povos Indígenas, cuja trajetória foi violentamente alterada com a chegada dos europeus a este continente a partir de 1492.
Dar-nos conta que se trata de povos, é o primeiro passo para percebermos o alcance da Campanha da Fraternidade deste ano. Um povo é receptáculo de uma proposta de vida humana, com a riqueza e complexidade de sua história, de sua cultura, de sua organização social e de sua religião que sustenta as motivações de suas lutas de sobrevivência. Nós barateamos demais nosso conceito dos índios, quando reduzimos sua realidade a indivíduos, desconectados de sua nação. Eles formavam, e formam, povos, cuja história, infelizmente, desconhecemos e desprezamos. E uma primeira revisão, também de linguagem, que se impõe, para acolhermos os questionamentos que a Campanha deste ano nos apresenta.
A Campanha vem sempre acoplada com a quaresma. Isto confere um significado mais amplo a suas propostas, que passam a repercutir o alcance profundo do mistério cristão, que somos chamados a reviver em cada quaresma, com as coordenadas da realidade que a Campanha nos apresenta. Quaresma é tempo de reler nossa vida à luz dos desígnios de Deus.
Pois bem, nós cristãos acreditamos que Deus manifestou os seus desígnios através da história de um povo. Inclusive, para nos compreendemos à luz deste fato, dizemos teologicamente que ainda formamos, como Igreja, o povo de Deus. Assim, a história de Israel, como fato singular, toma sentido a partir do significado universal que ela expressa, como paradigma dos desígnios de Deus a respeito de todos os povos. O próprio Cristo, que culmina a história de Israel, encarna o significado total deste paradigma, e ele, que só falava em parábolas, na verdade é, em pessoa, a grande parábola que expressa a aliança que envolve a Deus com a história de cada povo.
Por isto, a trajetória dos povos indígenas, com todo o direito, é também iluminada pela saga cristã, que a Bíblia nos descreve. O sentido total da história de cada povo é encontrado à luz da história do povo de Deus. Os povos indígenas têm todo o direito de serem reconhecidos como povos por quem Deus empenha os seus desígnios de salvação.
Este é o diapasão da Campanha da Fraternidade. Somos chamados a reconhecer, nos Povos Indígenas, um contraponto da nossa história sagrada. A trajetória desses povos também nos ilumina, nos interpela e nos convoca para a conversão. Eles testemunham que Deus continua a colocar-se ao lado do fraco e daquele que jaz sob o peso da escravidão. Deus escuta o clamor dos oprimidos, e desce para liberta-los, como fez com Israel no Egito. Lá, se passaram quatrocentos anos até a libertação. Aqui, já passou da hora dos Povos Indígenas serem reconhecidos em sua dignidade, e de serem asseguradas as condições para a sua sobrevivência e seu crescimento.
Certa vez Jesus colocou uma criança no meio dos discípulos, e disse que deviam ser como ela para entrar no Reino. Nesta quaresma, Deus coloca diante de nós os Povos Indígenas, e nos diz que precisamos reaprender com eles os seus desígnios de vida.