Estamos em 1933. Em 30 de janeiro, Adolf Hitler tinha sido designado chanceler do Império Alemão. Em 21 de março, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, juntamente com outros agrupamentos de direita, alcançou a maioria absoluta, iniciando o período do Terceiro Reich (Império) alemão. Três dias depois, em 23 de março, o mesmo parlamento aprovou a “Lei de Plenos Poderes”, tornando Hitler o legislador e absoluto ditador (EA, p.19, nota 1) .
A população alemã já sabia do ódio que Hitler nutria pelos judeus, pois ele havia relatado e justificado a sua vontade de “purificação” da raça alemã em sua obra Mein Kampf (Minha luta), publicada em dois volumes, em 1925 e 1926, mas colocada em circulação em 1930, com milhões de cópias. Com certeza, Edith Stein a tinha lido e há um bom tempo analisava o movimento de Hitler e sua influência, especialmente sobre a juventude alemã.
“Se ao menos eu conseguisse saber como Hitler chegou a esse terrível ódio contra os judeus”, dizia-me uma de minhas amigas judias numa das conversas em que procurávamos compreender por que tudo aquilo caía sobre nós. Os programas de governo e os discursos dos novos detentores do poder deram a resposta. Como uma imagem refletida em um espelho côncavo, uma caricatura assustadora dos judeus é projetada nesses programas e discursos. Talvez ela tenha sido desenhada com base em alguma convicção honesta. Talvez, ela até corresponda aos traços de alguns modelos vivos. Mas a “condição judaica” é necessariamente uma consequência direta do “sangue judeu?” (STEIN, Introdução, 2018, p.20).
Edith Stein e suas batalhas interiores e externas
As várias tentativas de Edith Stein em se tornar professora universitária e ensinar a Fenomenologia aos jovens, também deveriam ter como motivação, fazer com que eles aprendessem a olhar, com clareza, reflexão e sem pré-conceitos, os acontecimentos difíceis pelos quais a Alemanha estava passando, especialmente desde a sua derrota na Primeira Guerra Mundial. Edith Stein, doutora em filosofia, não conseguiu aceder a uma cátedra universitária de filosofia, por ser mulher e pela sua origem judaica. Mas, em 1932, foi contratada pelo Instituto de Pedagogia Científica de Münster, reconhecido e admirado pela sua formação cristã primorosa, frequentada por futuros professores de várias instituições de toda a Alemanha. Ela preparou as lições de um curso de antropologia filosófica e teológica, mas apenas conseguiu ministrar uma longa preleção e a primeira parte do curso, a de antropologia filosófica, publicado postumamente como Aufbau der menschlichen Person (A construção/constituição da Pessoa Humana).
Na Semana Santa e Páscoa daquele ano de 1933, Edith leva consigo toda a situação que o povo judeu estava enfrentando, para rezar, meditar e se aconselhar com o arquiabade Raphael Walzer, na Abadia Beneditina de Beuron, em “completo retiro espiritual” (EA, p. 538). Edith havia recebido o batismo na Igreja católica em janeiro de 1922, há mais de 11 anos, e desde então tinha se tornado assídua frequentadora da missa diária, do sacramento de confissão e da direção espiritual. Em 1928, ela vai para a Abadia de Beuron, aproveitar o feriado da Semana Santa e Páscoa para trabalhar na tradução, do latim para o alemão, das Questões disputadas da Verdade, de São Tomás de Aquino. Daquele ano em diante, ela aproveitava o retiro da Semana Santa para ir a Beuron se encontrar com o arquiabade, rezar e discernir a vontade de Deus para a sua vida.
Edith e o Papa Pio XI
Nesse ano de 1933, indo para o seu retiro espiritual, Edith decide solicitar uma audiência particular com o Papa Pio XI, para pedir que escrevesse uma encíclica sobre a perseguição aos judeus. Ela estava convencida de que a perseguição de Hitler não atingiria apenas os judeus, mas se voltaria também a outras pessoas, incluindo católicos. Mas, naquele ano, por causa do jubileu dos 1900 anos da morte de Jesus Cristo, Roma estava repleta de peregrinos e as audiências privadas não estavam sendo concedidas. Edith escreve, então, uma carta ao Santo Padre, narrando tudo o que percebia estar acontecendo em seu País, que foi entregue, em mãos, pelo arquiabade Raphael, entre 23 a 28 de abril de 1933, quando esteve em Roma.
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Retornando a Münster, tendo discernido que lhe seria impossível continuar trabalhando como professora no Instituto de Pedagogia, por causa de sua origem judaica, Edith pede afastamento ao diretor, que “exprimiu sua admiração ao ouvir a clareza de minha visão, embora eu vivesse tão retirada e não me envolvesse com as coisas do mundo” (EA, p. 542). Sentindo-se até aliviada por “participar da mesma sorte de seu povo”, Edith se põe a discernir o que fará de sua vida, e recebe, em uma longo adoração, a confirmação do Salvador: seu caminho agora era o Carmelo. Essa era a sua meta há 12 anos, desde que tinha lido o Livro da Vida de Santa Teresa, mas naquele tempo, temendo pela saúde de sua mãe, adia a sua entrada no Carmelo, por ela ter ficada muito abalada ao saber do batismo de sua filha. Edith tinha um grande amor e admiração pela sua mãe, uma viúva judia, que tinha conseguido educar, sozinha, os seus sete filhos: Paul, Else, Arno, Frieda, Rosa, Erna, e Edith, a caçula. Deu-lhes valores sólidos e uma instrução adequada para se desenvolverem de modo maduro e responsável, sustentando-os por meio da condução, com grande maestria, dos negócios deixados pelo seu falecido marido. Mas agora, por causa da perseguição contra os judeus e da lei que os impossibilitava de assumirem cargos públicos, Edith achou que a mãe aceitaria melhor a sua entrada em um Carmelo na Alemanha, do que, por exemplo, a sua partida para a América, para lecionar filosofia.
Edith Stein e sua entrada para vida religiosa
Edith Stein foi aceita como postulante no Carmelo de Colônia, aos 42 anos de idade. Voltou para sua casa em meados de agosto, para se despedir de seus familiares, e entraria para a clausura no dia 15 de outubro de 1933. Nesse período em que estava em casa, Edith aproveitou para recolher várias memórias de sua mãe, pois queria iniciar com a vida dela o relato que havia decidido escrever, com o intuito de mostrar ao povo alemão que os judeus eram pessoa normais e perfeitamente integradas em sua pátria.
Foi em sua casa materna que Edith começa a redigir o manuscrito que nos permitiu conhecer a sua vida, contada por ela própria: Vida de uma família judia. A introdução, assinada por ela, é datada de 21 de setembro de 1933, mas a escritura passou por várias interrupções e retomadas, sendo dado por encerrada em 1939, quando a Holanda é invadida pelos judeus. Edith havia sido transferida para aquele país, por causa da perseguição nazista, mas os judeus acabam invadindo a Holanda e ela enterra o manuscrito de mais de 1000 páginas, escritas a mão, na clausura do mosteiro de Echt.
Nossa exposição, nessa coluna, da vida e do pensamento de Edith Stein, seguirá esse seu relato, além de outros escritos autobiográficos, suas cartas a diferentes amigos e familiares, além de algumas de suas obras de filosofia e mística. Assim como a própria Edith em seus escritos autobiográficos, não se pretende aqui traçar uma cronologia de sua vida, mas apresentar, do modo mais fiel possível, seus sentimentos e valores, trazendo para nós e para o nosso mundo atual o que ela viveu, procurando aprender esse mesmo olhar de ausência de pré-conceitos que permitiu com que ela se saísse do ateísmo, se encontrasse com Cristo; se deixasse conduzir pela vontade de Deus, ao mesmo tempo em que permanecia atenta e responsável pelo seu papel em seu país e na História.
Desse primeiro texto, podemos nos questionar se nós não olhamos para algumas pessoas com o mesmo “espelho côncavo” de Hitler, como caricaturas, colocando-as à direita ou à esquerda de uma linha invisível, formada por nossos próprios julgamentos e tida como absolutamente verdadeira. Convido a todos e a todas, incluindo-me também nesse apelo, a participar da Semana Santa desse ano perguntando a Deus qual a sua vontade para a própria vida, qual o nosso papel e missão na História da própria família, da comunidade, da cidade, do país, e do humanidade.
Referência Bibliográfica:
[1] Edith Stein. Vida de uma família judia e outros escritos autobiográficos. Trad. Maria do Carmo Wollny e Renato Kirchner. Rev. Juvenal Savian Filho. São Paulo: Paulus, 2018. – Coleção Obras de Edith Stein. Esse texto será referido aqui por: EA (Escritos Autobiográficos).