Pela 39ª vez, a Igreja no Brasil promove a Campanha da Fraternidade, realizada cada ano no tempo quaresmal. O lema da Campanha, que se iniciará na próxima Quarta-Feira de Cinzas, é Fraternidade e Povos Indígenas, e o lema, Por uma terra sem males.
Talvez a Campanha da Fraternidade deste ano tivesse sido mais adequada em 2000, quando a Igreja celebrou os 500 anos da evangelização no Brasil. De qualquer maneira, o tema da próxima Campanha, mesmo que abordado com certo atraso, não deixa de ser de grande importância, pois acontece durante a Década Internacional dos Povos Indígenas (1995- 2004), instituída pela Assembléia Geral da ONU. Não deixa de ser também o resgate de uma dívida social para com nossos irmãos indígenas, que, segundo alguns antropólogos, habitam o continente americano há 40 mil anos.
Com a Campanha, a Igreja deseja interpelar o Governo e a sociedade sobre a difícil situação das comunidades indígenas, isto é, dos descendentes dos primeiros habitantes do Brasil, e convidar a todos à solidariedade para com eles, combatendo toda forma de discriminação e marginalização, defendendo seus direitos – principalmente o direito à terra – e respeitando-lhes o desenvolvimento cultural. Trata-se, em breves palavras, de promover o cumprimento da Constituição Federal (art. 231), que reconhece ‘aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam’.
A Campanha quer fazer refletir sobre as raízes da Nação brasileira. E também sobre o processo de colonização do Brasil, que, com seus problemas – entre outros, a busca desenfreada de riquezas por parte dos colonizadores, o encontro violento destes com as comunidades indígenas e as lutas entre os próprios índios de etnias diversas – provocou a marginalização e a destruição de grande parte das populações autóctones de nosso país. Reconhece-se que, no processo de dizimação dos índios, tenha havido a responsabilidade de membros da Igreja, pois nem todos eles ‘estavam à altura de sua responsabilidade de cristãos’. Não se pode deixar de reconhecer, contudo, o trabalho incansável em defesa da cultura indígena e contra a escravidão dos índios, de um Pe. Manoel da Nóbrega, de um Beato José de Anchieta, de um Pe. Antônio Vieira e, no âmbito da colonização espanhola, de um Frei Bartolomeu de Las Casas ou de um Frei Antônio de Montesinos, além de tantos outros ‘intrépidos combatentes da justiça e evangelizadores da paz’ (Puebla, nº 8).
A partir do Concílio Vaticano II e das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano, realizadas em Medellin, Puebla e Santo Domingo, a Igreja tem-se empenhado ainda mais em assistir as populações indígenas que se tornaram cristãs, bem como em promover o diálogo inter-religioso e cultural com os demais povos indígenas, apoiando-os na luta pelo direito à terra e pelo próprio desenvolvimento cultural. Na mensagem de abertura da próxima Campanha da Fraternidade, o Papa
João Paulo II reforça esse compromisso da Igreja, com as seguintes palavras: ‘A Igreja permanecerá sempre ao lado dos que sofrem as conseqüências da pobreza e da marginalização, e seguirá estendendo sua mão materna aos povos indígenas para colaborar na construção de uma sociedade onde todos e cada um, criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26), vejam respeitados seus direitos, tendo condições de vida conforme sua dignidade de filhos de Deus e irmãos em Jesus Cristo. Tal é o trabalho de evangelização que incumbe à Igreja, sobre o qual, o Papa, na mesma mensagem, transcrevendo os ensinamentos da Lumem Gentium, nº 9, disserta: ‘Destinada a estender-se a todas as regiões, ela (a Igreja) entra na história dos homens, ao mesmo tempo que transcende os tempos e as fronteiras dos povos’. ‘Deste modo’, acrescenta o Papa, ‘a Igreja quer introduzir o Evangelho nas culturas dos povos, transmitindo-lhes sua verdade, assumindo, sem compometer de modo algum a especificidade e a integridade da fé cristã, o que de bom existe nessas culturas e renovando-as a partir de dentro (cf. Redemptoris Missio, 52), levando a todos a mensagem de salvação realizada por Cristo’.
A Campanha da Fraternidade não só pretende levar-nos a analisar e a julgar, à luz do Evangelho de Jesus Cristo, a precária situação em que se encontram nossos irmãos índios, mas também nos quer propor a realização de ações para solucionar os graves problemas que os atingem.
Há muito a fazer pelos índios brasileiros. Como se sabe, das 771 áreas indígenas existentes, 68% ainda não têm o processo de demarcação concluído. Em 178 territórios, o processo sequer foi iniciado. Na área da saúde, igualmente, a situação das populações indígenas é deficiente.
Encontra-se tramitando no Congresso Nacional o projeto de um novo estatuto para os povos indígenas. Faz-se necessário acompanhar esse projeto, a fim de que ele venha a corresponder às reais necessidades das comunidades indígenas brasileiras.
O Brasil é um país pluricultural e plurirracial. É um autêntico tapete ou arco-íris de etnias e culturas, o que constitui, sem dúvida, verdadeira e incomparável riqueza. É mirando essa situação que a Campanha da Fraternidade 2002 nos convida a reconhecermos os valores das diferentes culturas do Brasil e a nos abrirmos a eles, para, juntos, construirmos uma ‘terra sem males’, uma sociedade justa e solidária, antecipação do Reino definitivo.
Dom Raymundo Damasceno Assis
Bispo Auxiliar de Brasília
Secretário-Geral da CNBB