Nas narrativas bíblicas, para entender as dores de Nossa Senhora, a dureza e o sofrimento com os quais Ela é tratada por Seu Filho Jesus Cristo, é necessário compreender o sentido da constante iniciação à fé pura e o estar de pé junto à Cruz.
Maria esteve com Jesus junto à Cruz 1, “não sem desígnio de Deus, sofrendo com o Seu Filho único e associando-Se com coração de mãe ao Seu sacrifício, consentindo com amor no sacrifício da vítima por Ela mesma gerada. Finalmente, pelo próprio Cristo Jesus moribundo na cruz, foi dada como mãe ao discípulo com estas palavras: ‘Mulher, eis aí o teu filho’”2 e, depois, ao lado daquele a quem Ele amava: “Eis a tua mãe!”3. Todo o sofrimento da Mãe do Senhor, especialmente as dores pela crucifixão e morte do Seu Filho, tem seu sentido mais pleno no mistério pascal, na obra da salvação do mundo.
Ficamos surpresos sem saber a razão das palavras e do tratamento de Jesus para com a Sua Mãe, tanto em Caná como no Calvário 4, nos quais ela é tratada por “mulher”. Seu próprio Filho, Jesus Cristo, é “o primeiro a empunhar a espada que a deve transpassar”5. Maria estava sendo preparada, desde a profecia de Simeão 6, passando pela forma dura com a qual Jesus a tratou em Caná 7 e, em outras narrativas bíblicas, para o momento decisivo aos pés da cruz. A providência divina usou dessa dura pedagogia com a Virgem Maria para o Seu amadurecimento na fé e para que Ela estivesse de pé junto à cruz de Cristo 8.
As dores de Nossa Senhora têm seu sentido no mistério pascal de Jesus Cristo
No Calvário, manifestam-se o aparente fracasso do Filho e o Seu abandono pelo Pai, para os quais a Mãe precisa dizer “sim”, pois ela havia aceitado todo o destino de Seu Filho 9. “E, como para encher totalmente o cálice amargo, o Filho ao morrer, abandona explicitamente Sua mãe, na medida em que Lhe retira e Lhe atribui um outro filho: ‘Mulher, eis o teu filho’”10. Nessa passagem bíblica, vemos o cuidado de Jesus com a sobrevivência de Sua Mãe, e se “torna evidente que Maria manifestamente não tinha outros filhos segundo a carne, pois, senão, a Sua entrega ao discípulo amado seria supérflua e inadmissível”11.
Entretanto, há um outro motivo para essa passagem que não deve passar despercebido: “Tal como o Filho é abandonado pelo Pai, também Ele abandona Sua mãe, de forma que ambos estão unidos no mesmo abandono. Só assim Ela está intimamente preparada para assumir a maternidade eclesial relativamente a todos os novos irmãos e irmãs de Jesus”12.
A Sua obediência como Mãe do Salvador, a Sua abertura à vontade do Pai, a fez livre para assumir essa maternidade espiritual sobre os crentes. O engrandecer de Deus 13 que está presente em Maria, significa tornar-nos livres para Ele, significa um verdadeiro êxodo, uma saída do ser humano de si mesmo, a passagem da oposição para a união das duas vontades, a vontade humana e a divina que passam pela cruz da obediência. Esse aspecto crucificante da graça, da profecia e da mística encontramos referido em Lucas, no que diz respeito à Maria, em primeiro lugar, no encontro com o velho Simeão.
Ele diz, profeticamente, a respeito da Mãe de Jesus: “Uma espada transpassará a tua alma!”14. Essa profecia de Simeão nos remete à profecia de Natã para Davi que havia mandado matar Urias: “A espada jamais se afastará de tua casa”15. “A espada que impende sobre a casa de Davi fere, agora, o coração de Maria. No verdadeiro Davi, que é Cristo, e, em Sua mãe – a Virgem pura – a maldição é executada e superada”16. A espada que transpassará o coração de Maria está ligada à Paixão do Filho, que se tornará a Sua própria paixão.
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A paixão de Maria
A paixão da Virgem Maria começa na Sua visita ao Templo 17. Nossa Senhora deve aceitar a primazia do verdadeiro Pai e do Templo, renunciando Àquele a quem deu à luz. Ela leva até as últimas consequências o “sim” à vontade de Deus, à medida que se retrai e liberta o Filho para a missão d’Ele. Nos momentos em que é repelida por Jesus, durante a Sua vida pública, nesse retraimento de Maria, dá-se um passo importante que se cumprirá na cruz com a palavra: “Mulher, eis o teu filho”18.
Já não é Jesus, e sim o discípulo amado, o filho d’Ela. “A aceitação e a disponibilidade são os primeiros passos pedidos; o abandono e a renúncia são o segundo. Só assim a Sua maternidade torna-se perfeita”19 . A bem-aventurança, segundo a qual é dito “Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram”20, só se realiza verdadeiramente quando se torna outra bem-aventurança: “Felizes, sobretudo, são os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática”21. Dessa forma, “Maria é preparada para o mistério da cruz, que não termina simplesmente no Gólgota. O Seu Filho permanece sinal de contradição; e Ela é mantida até o fim na dor da contradição, no sofrimento da maternidade messiânica”22.
Na imagem de Nossa Senhora das Dores, da Mãe sofredora que tem o Crucificado nos seus braços, “nesta mãe compadecida os sofredores de todos os tempos viram a imagem mais pura da compaixão divina, que é a única verdadeira consolação. Pois toda a dor, todo o sofrimento é, na sua essência última, solidão, perda de amor, felicidade destruída pelo inaceitável. Só o ‘com’ da com-paixão pode curar a dor […]. Deus não pode padecer, mas pode compadecer-se”23. Há uma paixão muito íntima em Deus que é a Sua própria natureza: o amor. Por ser Amor, não é estranho a Deus o sofrimento sob a forma de compaixão. Nesse sentido, “a Cruz de Cristo é a compaixão de Deus pelo mundo”24.
No Antigo Testamento, a compaixão de Deus se expressa em hebraico pela palavra rahamim, que significa “seio materno”. Essa palavra hebraica exprime o estar “com” o outro, a aptidão humana de estar presente com o outro, recebê-lo, sustentá-lo, dar-lhe vida enquanto ser assumido. “Com uma palavra da linguagem do corpo, o Antigo Testamento diz-nos como Deus nos acolhe e nos sustenta com um amor de compaixão. […]. A imagem da Pietá, a mãe que chora o filho morto, tornou-se (na tradução viva desta palavra): nela se torna manifesto o sofrimento maternal de Deus”25.
Assim, na imagem da Mãe lacrimosa, imagem da rahamim de Deus, a imagem da cruz se cumpre inteiramente, porque a cruz é assumida, ela é compartilhada no amor que nos permite, na Sua compaixão maternal, experimentar a compaixão de Deus.
“A dor da mãe é dor pascal que já opera a abertura da transformação da morte à presença salvífica do amor”26. A alegria da anunciação está presente no mistério da cruz, pois a verdadeira alegria nos permite ousar o êxodo do amor até o íntimo da santidade ardente de Deus.
Essa alegria verdadeira não é destruída pelo sofrimento, e sim levada por esse à sua plena maturidade. Tal maturação possibilita uma nova maternidade. Esta “’nova maternidade de Maria’ […] gerada pela fé, é fruto do ‘novo’ amor que nela amadureceu definitivamente aos pés da cruz, mediante a sua participação no amor redentor do Filho”27.
Nossa Senhora das Dores, rogai por nós!
1Cf. Jo 19, 25.
2LG 58.
3Cf. Jo 19, 26-27.
4Cf. Jo 2, 4; 19, 26.
5RATZINGER, Cardeal Joseph; BALTHASAR, Hans Urs Von. Maria, Primeira Igreja. Coimbra: Coimbra, 1997.
6Cf. Lc 2, 34-35
7Cf. Jo 2, 4.
8Cf. Jo 19, 25.
9Cf. Lc 1, 31-33; 2, 34-35.
10RATZINGER, Cardeal Joseph; BALTHASAR, Hans Urs Von. Op. cit., p. 108.
11Id., ibid.
12Id., ibid.
13Cf. Lc 1, 45
14Lc 1, 35a.
152 Sm 12, 9.
16RATZINGER, Cardeal Joseph; BALTHASAR, Hans Urs Von. Op. cit., p. 74.
17Cf. Lc 2, 22-38.
18Jo 19, 26.
19RATZINGER, Cardeal Joseph; BALTHASAR, Hans Urs Von. Op. cit., p. 75.
20Lc 11, 27.
21Lc 11, 28.
22RATZINGER, Cardeal Joseph; BALTHASAR, Hans Urs Von. Op. cit., p. 75.
23Id., ibid.
24Id., p. 76.
25Id., ibid.
26Id., p. 77.
27RM 23.