Igreja

São Clemente de Roma e o Legado de Suas Epístolas

As epístolas de Clemente: um chamado a unidade, caridade e ordem na comunidade cristã

São Clemente, o terceiro sucessor de São Pedro, bispo de Roma no final do primeiro século, deixou um legado importante para a Igreja primitiva, especialmente através de sua epístola aos Coríntios. Embora os detalhes biográficos sejam escassos e envoltos em narrativas posteriores, possivelmente lendários, sobre seu martírio, a influência de seus escritos é inquestionável. A proximidade de Clemente com os apóstolos, atestada por Santo Ireneu, confere peso à sua voz e aos seus ensinamentos.

Crédito: Giambattista Tiepolo/Domínio Público

Primeira epístola aos coríntios: um apelo a unidade

É importante salientar que esta não é a epístola aos coríntios que temos na Bíblia, escrita em Éfeso por volta de 55-56 d.C., que foi escrita pelo Apóstolo Paulo. A carta de São Clemente foi escrita depois da morte dos apóstolos, estando ainda vivo apenas São João. São Clemente, nesta feita, era o Bispo de Roma e sabendo das dissenções que aconteciam em Coríntio, escreveu uma carta admoestando aquela comunidade.

A Primeira Epístola aos Coríntios, foi escrita por volta de 96 d.C. em nome da Igreja de Roma, destaca-se como um documento crucial para a compreensão da Igreja primitiva e seu funcionamento. A epístola surgiu em resposta a conflitos internos na comunidade coríntia, onde presbíteros haviam sido depostos por um grupo de jovens contestadores. Clemente intervém não com imposição de autoridade, mas com um apelo à unidade e à ordem, exortando à humildade, à caridade e à obediência à hierarquia eclesiástica. Suas argumentações se fundamentam nas Escrituras Sagradas e no exemplo de Cristo, demonstrando a importância da tradição e da vida virtuosa.

A defesa da soberania de Cristo e a autoridade apostólica

A carta aborda diversos temas cruciais para a Igreja nascente. Clemente defende a doutrina da sucessão apostólica, argumentando que a autoridade eclesiástica deriva de Deus, passando por Cristo, os apóstolos e, por fim, os bispos. Ele reforça a importância da harmonia dentro da comunidade, comparando-a à ordem presente no universo e no corpo humano, onde cada membro desempenha uma função específica. A Primeira Epístola aos Coríntios também se destaca por ser a primeira fonte cristã a utilizar o termo “laikós” (leigo), distinguindo-o da hierarquia, mas enfatizando a interdependência entre todos os membros do corpo de Cristo. A extensa oração final, além de louvar a Deus por sua providência, inclui pedidos pela paz e pelas autoridades políticas, revelando uma perspectiva complexa sobre a relação entre a Igreja e o Estado. Clemente reconhece a legitimidade das instituições políticas, mas também apela para que os governantes exerçam o poder com justiça e piedade, sujeitos à soberania divina.

Segunda epístola aos coríntios: a mais antiga homilia cristã

A chamada Segunda Epístola aos Coríntios, também não confundir com a epístola homônima do cânon, embora tradicionalmente atribuída a Clemente, é hoje reconhecida como uma homilia de autor desconhecido, escrita provavelmente antes de 150 d.C., em Corinto ou Alexandria. Diferenças estilísticas e a natureza do texto confirmam que não se trata de uma carta e que Clemente não foi seu autor. Apesar disso, a “Segunda Epístola”,  é um valioso documento por ser a mais antiga homilia cristã conhecida, oferecendo um vislumbre da liturgia e dos temas teológicos presentes nas comunidades cristãs primitivas.

A grandeza de Cristo e seu beneplácito

A homilia exalta a grandeza de Cristo e seu beneplácito, inclusive sua capacidade de atrair pagãos para a fé. Enfatiza a importância de confessar Cristo não apenas com palavras, mas também com obras, demonstrando a fé através de uma vida íntegra e dedicada ao próximo. Exorta os cristãos a temerem a Deus acima dos homens, a desprezarem os valores mundanos e a se manterem firmes na fé, mesmo diante da perseguição e do martírio. A homilia também aborda temas teológicos importantes, como a graça do batismo, a necessidade da penitência e da pureza corporal, e a defesa da ressurreição da carne contra as doutrinas gnósticas.

Uma carta de cuidado e aconselhamento

A interpretação da Primeira Epístola aos Coríntios como evidência do primado papal é motivo de debate. Enquanto alguns a veem como uma demonstração da autoridade do bispo de Roma sobre outras igrejas, outros argumentam que a intervenção de Clemente se baseia na preocupação com a unidade da Igreja e na autoridade derivada das Escrituras, não em uma supremacia jurídica. A ausência de uma afirmação explícita de primazia na carta e a prática comum de comunicação e aconselhamento entre igrejas na época reforçam essa segunda interpretação.

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Legado de clamor a unidade, caridade e vivência da fé

Independentemente da interpretação sobre a primazia papal, as epístolas atribuídas a Clemente, especialmente a Primeira Epístola aos Coríntios, permanecem como testemunhos importantes da Igreja primitiva. Elas revelam as preocupações, os desafios e a vitalidade teológica das comunidades cristãs no final do primeiro século e oferecem valiosas lições para a Igreja de hoje. A ênfase na unidade, na caridade, na importância das Escrituras e na vivência da fé no cotidiano são ensinamentos atemporais que continuam a inspirar e desafiar os cristãos em todos os tempos.

 

Jonatas Passos é natural de Cruzeiro (SP), marido, pai e colaborador na Fundação João Paulo II. Formado em Tecnologia, Informática e História. Pós-Graduado em Jornalismo e História do Brasil, com extensão em História da Religião.