Se existe o mal, existe Deus
“Os Salmos podiam afirmar que Javé ‘chovia’ ou ‘trovejava’, que era Ele quem causava a guerra e mandava a peste. O Novo Testamento podia supor que determinada enfermidade era causada pelo demônio. Hoje, porém, isso não é mais possível. Mesmo que o quiséssemos, não poderíamos ignorar que a chuva e o trovão têm causas atmosféricas bem definidas; que a doença obedece a vírus, bactérias ou disfunções orgânicas; e que as guerras nascem do egoísmo humano. Ao falarmos de fenômenos acontecidos no mundo, impôs-se a evidência de que a ‘hipótese Deus’ é supérflua como explicação. Mais ainda, é ilegítima e obstinar-se nela acaba, fatalmente, prejudicando a credibilidade da fé.”
Foto: Wesley Almeida/ Produção: Wesley Almeida e Daniel Mafra – cancaonova.com
É com essas e outras considerações que Andrés Torres Queiruga procura explicar a ação de Deus no mundo em dois de seus livros: ‘Um Deus para hoje’ e ‘Repensar o mal’. Dada a importância do assunto, permito-me aprofundá-lo em quatro artigos, deixando-me conduzir, nos três primeiros, pelo teólogo espanhol e, no último, por Bento XVI, que ratificará – ou retificará – o pensamento do padre Andrés.
Queiruga começa com um questionamento: “O problema mais sutil – e, por isso mesmo, a tarefa mais difícil – aparece pelas posições de meio-termo, em que ou se aceitam os princípios, mas não se tiram as consequências ou se admitem alguns elementos, mas se resiste a aceitar outros que, no entanto, são solidários. Assim, não se pensa mais que Deus ‘chova’, mas, em alguns lugares ou ocasiões, as pessoas fazem preces para pedir chuva; não se crê mais que Deus mande a guerra, mas celebram Missas por suas campanhas; reconhecem os gêneros literários na Bíblia, mas continuam tomando à letra o sacrifício de Isaac. A intenção pode ser boa, mas os danos acabam sendo muito graves”.
Seremos nós melhores que Deus?
A raiz do problema foi sintetizada no que se costuma denominar “O dilema de Epicuro”. Nele, o filósofo grego nega a existência de Deus a partir da presença do mal na história humana: «Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não quer; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer, mas não pode, é impotente; se pode, mas não quer, é mau; se não quer nem pode, é fraco e perverso; se pode e quer, então, por que não o elimina?».
Queiruga comenta o dilema com estas palavras: “Em vista dos grandes males que afligem o mundo, um Deus que, podendo, não os elimina, acaba, por força, aparecendo como ser mesquinho e insensível, indiferente e até mesmo cruel. Por que, quem, se pudesse, não eliminaria – sem pergunta prévia de qualquer tipo – a fome, as pestes e os genocídios que assolam o mundo?
Seremos nós melhores que Deus? Como disse Jürgen Moltmann, diante da recordação de Verdun, Stalingrado, Auschwitz ou Hiroxima, um Deus que permite tão escandalosos crimes, fazendo-se cúmplice dos homens, dificilmente se pode chamar Deus”.
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O mal não existiria se não existisse o bem
Para Santo Tomás de Aquino, porém, o que o argumento de Epicuro prova é a existência de Deus: “Se existe o mal, existe Deus. O mal não existiria se não existisse o bem, do qual é privação. E o bem não existiria se Deus não existisse”. Outro teólogo para quem o sofrimento não impede a crença em Deus é o mártir evangélico Dietrich Bonhoeffer, morto num campo de concentração nazista em 1945. Para ele, a vida brota do amor – o qual, por se identificar com a busca do bem, exige uma constante conversão. Contudo, de acordo com o padre Andrés, tais conceitos precisam ser bem entendidos: “Bonhoeffer encontrou a melhor resposta para o nosso tempo: ‘Só o Deus sofredor pode salvar-nos’. Mas essa afirmação só é válida se se situa dentro do paradigma de um Deus não intervencionista e delicadamente respeitoso da autonomia do mundo. Enquanto se mantiver, de modo acrítico e talvez inconsciente, o velho pressuposto de uma onipotência abstrata e definitivamente arbitrária, no sentido de que Deus poderia, se quisesse, eliminar os males do mundo, converte-se a resposta em pura retórica, que, a longo prazo, mina pela raiz a possibilidade de crer. De nada serve a própria proclamação de que Deus sofre com nossos males, se, antes, pôde tê-los evitado, pois, nesse caso, chegariam tarde demais sua compaixão e dor. Pode até provocar o riso, como se diz do espanhol rico e piedoso que construiu um hospital para os pobres, depois de tê-los empobrecido!”.
Autor: Dom Redovino Rizzardo, cs