Podemos dizer que Noé foi um homem de coragem e um pregador da Palavra de Deus?
Ainda que nossa resposta seja negativa, temos de reconhecer que Noé teve uma coragem extraordinária para realizar os desígnios divinos a seu respeito. Além disso, a Igreja sempre considerou Noé um dos grandes homens justos do Antigo Testamento1. Os Santos Padres sempre viram Noé como tipo ou imagem de Cristo. Estes e outros fatos corroboram com a ideia de que ele foi um grande pregador de Deus.
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Noé e a virtude da justiça e da coragem
As Sagradas Escrituras dizem a respeito do Patriarca: “Noé era um homem justo e perfeito no meio dos homens de sua geração” (Gn 6,9). Dizer que um homem é justo é o mesmo que dizer que ele é santo; no entanto, o povo judeu, que nos transmitiu essa tradição, não atribuía a qualquer pessoa o título de justo, mas somente àquelas pessoas extremamente virtuosas. Por essas e outras razões, a Igreja sempre considerou o Patriarca como um dos grandes homens santos do Antigo Testamento.
Como Noé era um homem justo, podemos dizer que ele era um homem de grandes virtudes, pois, como nos ensina Santo Tomás de Aquino, as virtudes crescem juntas em nossa alma. Sendo assim, a virtude da fortaleza ou a coragem de Noé, certamente, o impulsionava a falar com veemência, conforme as inspirações da graça. Além disso, podemos também dizer que a virtude da prudência o ajudava a saber o que dizer, quais palavras usar, qual era o melhor momento para falar e qual a justa medida na forma de as transmitir.
Noé como tipo de Jesus Cristo
A Igreja sempre fez a leitura tipológica do Antigo Testamento, ou seja, leu este à luz de Jesus Cristo e do Novo Testamento. Essa forma de ler as Sagradas Escrituras é denominada “tipológica”, porque revela a novidade de Cristo a partir das “figuras” ou “imagens” (que em grego se diz “typos”) que a anunciavam nos fatos, nas palavras e nos símbolos da primeira aliança2. Nesse sentido, São Paulo já enxergava Jesus Cristo como o Novo Adão, que inaugura a nova criação: “O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo homem vem do Céu” (1 Cor 15,47).
Em continuidade com a tradição apostólica, os Santos Padres viam, na Arca de Noé, uma imagem da Igreja Católica. Alguns deles, como São Justino, viam na pessoa de Noé o tipo de Jesus Cristo, pois, a partir da aliança feita com Deus e da Arca, salvando oito pessoas, Noé salvou a humanidade e, de modo análogo, Jesus Cristo, no oitavo dia, ressuscitou e abriu para nós as portas da eternidade.
Ressurreição no oitavo dia?
A princípio, pode parecer estranho dizermos que Jesus Cristo ressuscitou no oitavo dia. Pois, o Crucificado deveria ressuscitar no terceiro dia depois de Sua paixão (cf. Mt 20, 19). Esta é a fé da Igreja Católica, profetizada pelo próprio Cristo e ensinada pelos Apóstolos e pelos os Santos Padres. Entretanto, os Santos Padres também ensinam que Jesus Cristo ressuscitou no oitavo dia. Esta afirmação está ligada à Criação do mundo, que foi feita por Deus em seis dias e, no sétimo (o Sábado), Ele descansou.
Então, podemos dizer que a obra da Criação foi finalizada no sétimo dia. Jesus Cristo, o novo Adão, realizou a nova Criação na Sua ressurreição, que se deu no dia seguinte ao Sábado, que passou a chamar-se Domingo, Dia do Senhor. Os sete dias da Criação somados ao dia da ressurreição de Jesus totalizam oito dias. Assim, a Tradição da Igreja passou a chamar o dia da ressurreição de Cristo de “Oitavo dia”, porque a obra da Criação foi elevada à perfeição em Jesus Cristo nesse dia bendito e glorioso!
Salvação
O Magistério da Igreja nos ensina que: “Uma só foi, ao tempo do dilúvio, a arca de Noé, prefigurando uma só Igreja; e com um arremate de um só côvado, ela teve um só timoneiro e dirigente, isto é, Noé; e fora dela, lemos, todo ser vivo sobre a terra foi destruído”3. Ora, esse “Timoneiro” – que é, ao mesmo tempo, imagem de Cristo e do Sumo Pontífice – não teria salvado a sua família, sua mulher, seus filhos Sem, Cam e Jafet e suas esposas, bem como os animais, sem que Deus lhe tivesse dado o poder da Palavra, para que estes lhe obedecessem.
Quantos de nós passamos pela experiência de tentar levar um familiar para Deus, mas não conseguimos? Noé convenceu toda sua família a deixar tudo para trás e entrar numa arca com inúmeros animais. Dessa forma, a partir de sua descendência, Noé salvou toda a humanidade!
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O pequeno número dos escolhidos
Podemos objetar que, se Noé tivesse realmente coragem e o dom de falar em nome de Deus, ele teria convertido mais pessoas, para que entrassem na Arca e se salvassem. Esse argumento, no entanto, não é válido, pois o Senhor não impõe Sua vontade e respeita a liberdade do homem. Além disso, esse pequeno número de pessoas mostra que Deus salva muitos por meio de poucos.
Essa realidade fica visível no ministério de Jesus Cristo. Quando ficou conhecido, multidões se reuniam à sua volta para ouvir suas palavras. No entanto, conforme o tempo passava e o Mestre revelava as dificuldades e as renúncias do caminho que ensinava, muitos deixaram de o seguir, chegando a ponto de Jesus perguntar aos doze: “Quereis vós também retirar-vos?” (Jo 6,67). Simão Pedro respondeu em nome deles: “Senhor, a quem iríamos nós? Tu tens as palavras da vida eterna” (Jo 6,68). No entanto, quando chegou a hora de Jesus, no Calvário, estavam com Ele apenas sua mãe, a Virgem Maria; a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cléofas, Maria Madalena e São João (cf. Jo 19, 25-26).
Esse número fica ainda menor se considerarmos que, depois da Sua Paixão e Morte na Cruz, somente Nossa Senhora continuou a acreditar na Ressurreição de Jesus. No Domingo da Ressurreição, os outros discípulos procuravam o Corpo de Cristo (cf. Jo 20, 1ss). Naquele momento da história, a fé da Igreja ficou reduzida a duas pessoas: Jesus e a Maria. No entanto, não podemos dizer que Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado, fosse um mau pregador.
Espelhar-se em Noé
Nas figuras de Noé e Jesus, vemos que Deus salva muitos por meio de poucos escolhidos. Sendo assim, da mesma forma que Cristo é nosso modelo, não tenhamos medo de nos espelhar em Noé, pois sua oferenda foi agradável a Deus, que o abençoou e, por meio dele, abençoou toda a criação. Assim foi feito, porque seu coração era justo e íntegro, e também porque ele caminhava com Deus (cf. Gn 6,9), ou seja, tinha uma vida de oração íntima com o Senhor. Sejamos imitadores das virtudes de Noé e, certamente, seremos bons pregadores de Deus.
1 Cf. PAPA SÃO JOÃO PAULO II. Catecismo da Igreja Católica, 58.
2 Cf. idem, 1094.
3 PAPA BONIFÁCIO VIII. Bula Unam sanctam, 870.