Não há paz sem justiça, não há justiça sem perdão. Este é o título da mensagem do Santo Padre para a celebração do Dia Mundial da Paz, que teve lugar na recente passagem de ano.
Trata-se de uma resposta de Fé ao império do medo e ao reino do puro confronto religioso. É também uma proposta corajosa num tempo dominado pela idéia da legitimidade da força para vergar a injustiça e pela recuperação da regra de Talião para reparar o mal.
A linguagem da violência invade o quotidiano da comunicação social: Jihad, Fatah, Guerra Santa, IRA, ETA, UCK, Hamas. Esta escalada parte da idéia de que o extermínio do outro é a condição da minha sobrevivência. Assim, ao exercício do terror responde-se com um terror ainda maior. O preconceito humano invade a esfera do sagrado instrumentalizando-o como estaleiro de novas sementeiras do ódio.
Sendo as religiões os grandes codificadores de valores não espanta que uma leitura simplista do 11 de Setembro, e a subseqüente guerra do Afeganistão, se vejam associados a uma cruzada que volta a opor Islão a Cristianismo, os valores da modernidade ocidental ao fanatismo religioso. Tanto mais que, como lembra S. Huntington, os elementos centrais de qualquer civilização são dois: língua e religião. Sendo o primeiro cada vez mais ténue sob a globalização do inglês, permanece a segunda como fator de diferenciação cultural.
Como sair deste aparente impasse. Violência gera violência injustiça fomenta ainda mais injustiça rancor promove cada vez maior rancor.
O Papa indica o caminho na citada mensagem:
Mas, nas circunstâncias atuais, pode-se falar de justiça e, ao mesmo tempo, de perdão como fontes e condições da paz? A minha resposta é que se pode e se deve falar, apesar da dificuldade que o assunto traz consigo, e da tendência que há a conceber a justiça e o perdão em termos alternativos. Mas o perdão opõe-se ao rancor e à vingança, não à justiça. Na realidade, a verdadeira paz é «obra da justiça» (Is 32, 17). Como afirmou o Concílio Vaticano II, a paz é «fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu para a sociedade humana, e que deve ser realizada pelos homens, sempre anelantes por uma mais perfeita justiça» (Const. past. Gaudium et spes, 78) ( )
(…) O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada; mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram nos corações. Para tal cura, ambas, justiça e perdão, são essenciais.
Ora, a verdade é que a guerra religiosa ou, numa acepção mais ampla, o confronto intercultural, sobem de tom nos mais diversos pontos do planeta. Em Caxemira, no Médio Oriente, no Tibete, na Irlanda do Norte, nos Balcãs, ou em Chiapas. A humanidade vê-se crescentemente enredada numa espiral de guerra em nome de um alegado Deus que manda matar em Seu nome.
A este propósito importa refletir maduramente nas palavras do sucessor de Pedro em Roma, que voltamos a recordar. Pretender impôr aos outros com violência aquela que se presume ser a verdade, significa violar a dignidade do ser humano e, em última instância, ultrajar a Deus, de quem aquele é imagem. Por isso, o fanatismo fundamentalista é um comportamento radicalmente contrário à fé em Deus. Visto de outro modo, o terrorismo instrumentalista não somente o homem, mas também Deus, acabando por fazer dEle um ídolo de que se serve para os seus próprios fins (…)
(…) Por isso, nenhum responsável das religiões pode ser indulgente para com o terrorismo e, muito menos, pregá-lo. É profanação da religião proclamar-se terrorista em nome de Deus, cometer violência ao homem em nome de Deus. A violência terrorista é contrária à fé em Deus Criador do homem, em Deus que cuida e ama o homem. E de modo particular, ela é totalmente contrária à fé em Cristo Senhor, que ensinou os seus discípulos a rezar: «Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido» (Mt 6, 12).
Kofi Annan, ao receber o Prêmio Nobel da Paz 2001, lembrou que a humanidade entrou por uma porta de fogo no novo século e que o seu futuro será definido por uma nova e mais profunda consciência da santidade e da dignidade de cada vida humana, independentemente da sua raça ou religião. E acrescentou assim, perceberemos que a humanidade é indivisível e que as verdadeiras fronteiras de hoje não são entre nações, mas entre poderosos e impotentes, livres e acorrentados, privilegiados e humilhados.
Assis representa este convite a um sobressalto de consciência da humanidade. A paz constroi-se na intimidade de cada consciência, a sublimidade do perdão é uma conquista do coração, a verdadeira reconciliação só se opera na intimidade do ser humano.
Por isso, no próximo dia 24 de Janeiro, a esperança da humanidade estará de olhos postos neste novo encontro de Assis durante o qual vamos rezar fervorosamente a Deus para que conceda ao mundo uma paz duradoura, fundada sobre a justiça, com os representantes das principais religiões do mundo.
A gravidade do momento impõe que nos sintamos todos convocados a esta vigília pela Paz no mundo, em espírito de inteira unidade de propósito e de oração com o Santo Padre. Em Assis, com o Papa, rezaremos ao Deus Pai que é único e protetor comum de todos os homens.
O tempo atual é especialmente propício. Acabamos de ser visitados, uma vez mais, pelo Príncipe da Paz, Aquele que nunca nos falta no período denso das celebrações natalícias, o Cordeiro que em nome da paz e da nossa salvação se imola no sacrifício da cruz.
Unidos em torno do Sumo Pontífice e irmanados em Cristo cada um de nós pode ser um verdadeiro construtor da Paz.
Roberto Carneiro
13 de Janeiro de 2002
Fonte: Ecclesia